Há muito não terminava de ver um filme e ficava com aquela sensação de dizer, ainda que para mim mesma: UAU! Pois ela veio com Roma, do mexicano Alfonso Cuarón, que anda colecionando prêmios por aí. Não é fácil de assistir: em preto e branco, falado em espanhol, com pouquíssima ação. Lançado pela Netflix, destacado no Globo de Ouro, está entre os pré-finalistas do Oscar.
A inspiração de tudo é a empregada doméstica, de carne e osso, da família de Cuarón. A trama gira em torno de Cleo e da família a quem ela serve. E trata da vida. Do cotidiano repetitivo e enfadonho. Nada acontece e tudo acontece. Como pano de fundo, o chamado Halconazo, massacre de estudantes ocorrido nos anos 1970 na Cidade do México. Mas o ponto central é mesmo essa vida que todos vivemos, com as particularidades de cada época. Quantas e quantas famílias identificarão suas Cleos.
Ao sentar-se no sofá para ver o filme na TV de casa (eu bem que quero revê-lo no cinema), resista à tentação de interrompê-lo para verificar a mensagem urgente que pisca numa de suas tantas redes sociais ou para buscar um cafezinho. Invista no filme do início ao fim.
Além da beleza e da crueza, ele me transportou de volta ao México de uns anos atrás, numa inesquecível viagem de 30 dias que me obrigou a conhecer o sistema de saúde do país. Com a imprudência dos viajantes, acabei vítima de uma insolação que causou uma desidratação e um humilhante desmaio num restaurante da belíssima San Miguel de Allende, a três horas da capital.
Acabei na fila do único hospital da cidade de 60 mil habitantes. Com o seguro de viagem na mão, podia pagar pelo atendimento particular na instituição pública. Quase madrugada, entrei para a fila de espera numa sala com uma dúzia de pessoas. O fato de pagar não me dava nenhum privilégio.
No banco ao meu lado, uma senhora, que parecia bem velha, de pele muito enrugada, dormia enrolada em um xale colorido. De repente, uma porta se abriu e chamaram pelos familiares de alguém. A velhinha despertou ao ser chamada pelo nome. Mal conseguia caminhar até a porta. Sem muitas palavras, o médico disse a ela que a filha estava bem, mas o bebê, que pesava 700 gramas, havia morrido. Eu levei um choque. A velhinha não disse nada, só ouviu, entre triste e resignada, as palavras do médico. Percebi que ela não conseguia mais ficar em pé e cedi meu lugar. Minha dor passou.
Quase não ouvi quando chamaram meu nome para o atendimento. Entrei numa enfermaria e um médico com um avental manchado de sangue me recebeu e me examinou. Em condições normais, sairia correndo dali, mas não estava em condições normais. Ele me receitou remédios para a dor e para evitar uma infecção. Medicada, voltei para a pousada. Ainda que anestesiada pela cena do hospital e pelos remédios, não conseguia dormir. A insônia faz bem à leitura. Lia México, de Erico Verissimo, meu companheiro de jornada. Quando o dia clareou, haviam se passado cem páginas de uma viagem do escritor pelo país, nos anos 1950, e, no entanto, ainda atual. Meus braços doeriam por muitos dias. Depois, ficariam sem pele.
As marcas da viagem jamais desapareceriam deles e aquelas cenas do hospital me voltaram agora assistindo a Roma. Não só por ser no México. Sem spoiler. Você verá a cena. E entenderá minha tristeza.