Gaúcho de Bagé, Ricardo Lugris vive há mais de duas décadas na França — atualmente mora em Chantilly e é vice-presidente de marketing de uma empresa internacional de leasing. Baseado por lá, o ex-executivo da Embraer já havia percorrido uma centena de países a bordo de sua moto até a aventura que descreve em Tempo em equilíbrio — entre Paris e Singapura, viagem de seis meses e 35 mil quilômetros percorrida sozinho. O livro será lançado em Porto Alegre em 9 de janeiro e pode servir de inspiração nessa viagem que é também de reflexão e autoconhecimento. Confira abaixo a entrevista feita por e-mail.
O LIVRO
Tempo em equilíbrio - entre Paris e Singapura
Editora Fontenele, 296 páginas
Lançamento no dia 9 de janeiro de 2018, às 19h30min
No Dado Bier (Av. Túlio de Rose, 80 - Jardim Europa, Porto Alegre)
Veja mais sobre o autor em rotaway.com.br, "As viagens de Ricardo Lugris".
Já tinhas feito alguma viagem do gênero sozinho?
Sim. Sou motociclista desde os anos 1980, quando participava de competições de enduro no Brasil. Ao mudar por razões profissionais para a França, em 1996, adquiri uma moto de viagem e, com minha mulher, Graça, passamos a viajar pela Europa com o intuito de conhecer a fundo o Velho Continente. Hoje, posso dizer que já percorri mais de uma centena de países com minha moto em cinco continentes, incluindo todos os países na Europa, da Rússia a Portugal, da Noruega a Malta. Escrever sobre o que observo e sinto sempre foi um hábito em minhas constantes viagens, tendo contribuído com mais de duas dezenas de matérias em revistas de motociclismo e em sites e blogs especializados na viagem de moto.
Um roteiro tão longo assim te gerou algum temor, antes da partida?
Uma viagem que deve durar seis meses sempre gera alguma ansiedade e requer, obviamente, uma razoável dose de planejamento. Entretanto, como menciono em meu livro, sou avesso ao excesso de organização para evitar a idealização dessa mesma viagem, que poderá se tornar fonte de frustrações para quem parte. Curiosamente, o maior temor que me acompanhou nos dias que antecederam a partida, e que estava comigo ao deixar a garagem de minha casa em Chantilly, na França, após despedir-me de minha família, foi em relação ao tempo disponível. Tendo trabalhado desde os 19 anos de idade, essa era a primeira vez que eu teria cada minuto, hora e dia ao longo de seis meses para mim mesmo, sem me preocupar com qualquer outra atividade que não fosse mergulhar nessa viagem que se revelou transformadora, portanto fascinante e percorrer, percorrer, percorrer... Seria eu capaz de gestionar o tempo a mim concedido? Os dias não se tornariam excessivamente longos? A solidão serial algo que me incomodaria? Haveria tédio?
Qual foi a principal surpresa encontrada no caminho?
Uma viagem de tantos dias onde o indivíduo se encontra sempre em movimento acaba por trazer algumas surpresas e coincidências, às vezes incrivelmente extraordinárias. Por exemplo: encontrei um grande motociclista francês, amigo de amigos, em Vladivostok, na Rússia, no mesmo ferry que ia para a Coreia do Sul, a quem deveria ter encontrado para uma conversa em Paris, antes da viagem, mas não tivera tempo. Também cruzei e conversei com um ciclista alemão na Mongólia e voltei a cruzar com ele, dois meses depois, em uma estrada de montanha no norte do Laos, quase na fronteira com a China. Essas coincidências, quase absurdas, fazem a riqueza e a alegria de poder estar em movimento e totalmente exposto e de poder viver suas próprias experiências.
Houve algum momento de perigo durante a viagem?
Uma viagem de motocicleta sempre aporta uma certa dose de risco ao qual o viajante deve fazer face utilizando seu bom senso e experiência e, sobretudo, saber reconhecer seus limites físicos, emocionais e técnicos. Tive duas quedas bastante sérias com a motocicleta que foram provocadas por dois curtos momentos de distração e que poderiam ter tido consequências bastante severas se não fosse minha gestão no momento da queda e o equipamento de boa qualidade que estava utilizando. Isso se passou no deserto de Gobi, onde tive que esperar por algumas horas até que alguém passasse para me ajudar a erguer a pesadamente carregada BMW 1200 GS Adventure que utilizo, e, um pouco mais tarde, nas montanhas do Laos, em uma estrada de terra que tinha sido molhada por um habitante para evitar a poeira. Só que isso foi feito em uma curva, levando ao chão este motociclista a quase 80km/h.
Dos lugares que conheceste ou revisitaste, qual o que mais te surpreendeu?
Em uma viagem tão longa, por geografias tão diversas, resulta bastante difícil resumir a um ou outro lugar que me tenha impressionado. No livro, descrevo um dos lugares que mais me apaixonaram por seu profundo silêncio na vastidão da sua hostil paisagem: o deserto de Gobi, na Mongólia e na China. Também amei e me emocionei com a grandiosidade do Lago Baikal, na Sibéria, além de, obviamente, monumentos como Angkor Vat, no Camboja, e Niko, no Japão, entre outros.
E das pessoas que tiveste contato, alguma em especial para mencionar?
Fluente em seis idiomas, sou um viajante aberto ao contato com as pessoas que cruzo. Obviamente e levando em conta essa característica, os encontros se sucederam quase que cotidianamente e alguns deles viraram amizades que perduram hoje, dois anos após essa longa viagem. Acho que as pessoas que mais me impressionaram foram as que realmente não conheci, mas que deixaram, em minha ausência, sobre a moto, quiçá temendo me incomodar, algum presente como biscoitos, barras de cereal, balas, doces, e também pequenos bilhetes de encorajamento, admiração e incentivo. A esses tímidos anônimos serei sempre grato. Em uma viagem de motocicleta, não há como não deixar de se emocionar a cada beijo jogado desde um automóvel por uma criança, um polegar erguido por um caminhoneiro, um tchauzinho dado por um monge budista, sorrisos e acenos enquanto você passa.
Qual foi o maior aprendizado?
Sem dúvida, uma viagem, seja ela qual for, aporta um aprendizado se estivermos abertos e nos sentirmos permeáveis a deixar nossos pré-julgamentos de lado e mergulharmos de cabeça na procura da compreensão e da tolerância em relação a outras culturas. Isso é inerente à viagem. Acho que o maior aprendizado foi saber conviver comigo mesmo ao longo de tanto tempo e perceber que sou capaz de estender meus próprios limites sem grandes façanhas ou feitos extraordinários. Somos, nós, pessoas normais, capazes de aportar a outros um pouco de sonho e de atenção. E, nisso, a motocicleta é pródiga.
Qual a próxima viagem?
Um dos maiores prazeres em uma viagem de motocicleta é preparar a próxima. Gosto de viagens que tem um sentido, um tema, uma espécie de reflexo no momento em que vivo. Assim, no passado percorri o caminho do mítico trem Expresso do Oriente, de Paris a Istambul, e, em outra viagem, a extraordinária Rota da Seda, da Turquia até o Quirguistão, quase na fronteira com a China.
Essas viagens aportam uma grande dose de impressões e experiências, sobretudo porque se processam em lugares mais exóticos, desconhecidos, surpreendentes. E não é essa a razão de viajar? Desde a viagem que descrevo em meu livro Tempo em Movimento já se passaram dois anos e cruzei outros caminhos por uma Europa menos conhecida como a Bósnia, Albânia e Macedônia, por exemplo. Neste momento, estou sonhando em voltar à Islândia, terra de elementos — gelo, fogo e água — que, em sua agressiva paisagem, guarda mistérios e paisagens inesquecíveis, além de um povo que te convida à sua casa, sua mesa e à sua cultura.