Tragédias como a que deixou 10 mortos e 15 feridos na pousada da Avenida Farrapos, em Porto Alegre, nos obrigam a olhar para o futuro escaneando o passado para identificar o conjunto de falhas que criou o cenário para o incêndio. Foi assim no caso da Boate Kiss, com seus 242 mortos. Como nos acidentes com aviões, é um conjunto de erros ou omissões somados que explica o sinistro. A isso não se pode chamar de fatalidade.
No caso da pousada Garoa, que abrigava pessoas pobres, sem teto, acolhidas pela assistência social da prefeitura ou que procuravam um lugar barato para morar, é preciso começar do início. Como pode um prédio naquelas condições ter licença para funcionar como pousada/hotel/hostel sem ter um plano de prevenção e combate a incêndio(PPCI)?
Ora, essa é a realidade da maioria dos prédios de Porto Alegre, públicos e privados — um dos edifícios mais exclusivos do bairro Moinhos de Vento não tem. O PPCI, popularizado depois do incêndio da Kiss, é uma obra de ficção em boa parte da cidade.
Mas e o alvará? A lei da liberdade econômica, cantada em prosa e verso como a solução para atrair investidores e combater a burocracia, permite que o “empreendedor” abra uma pousada sem que se faça qualquer fiscalização. Basta declarar que se enquadra como atividade de baixo risco.
Em geral, os proprietários buscam maneiras de agilizar o licenciamento, baratear custos e escapar da burocracia e das fiscalizações. Mas será que uma pousada improvisada em um prédio antigo é mesmo uma atividade de baixo risco?
Quando essas leis são aprovadas, não se faz a necessária reflexão. A sociedade só questiona quando a ocorre a tragédia. A Lei Kiss, que foi aprovada a duras penas, é flexibilizada o tempo todo. No Estado mesmo, em 2022, dezenas de atividades foram liberadas do licenciamento do Corpo de Bombeiros. Repetindo o que fizeram os antecessores, o governador Eduardo Leite adiou para 2026 a vigência plena da lei, mesmo alterada e descaracterizada.
Aliás
Como ninguém foi punido no incêndio da bate Kiss, o furor que se seguiu à tragédia, com blitze de fiscalização e aperto na legislação, foi arrefecendo. No caso de moradias coletivas, Porto Alegre e outras cidades estão repletas de placas nas portarias de prédios deteriorados, anunciando que há vagas a preços irrisórios.
Sem oportunismo
A tragédia da Farrapos não pode servir de escada para políticos oportunistas tentarem se promover às custas dos mortos. Cabe à Polícia Civil investigar o que aconteceu, ao Ministério Público denunciar eventuais culpados e à Justiça julgar os possíveis responsáveis.
Também não se pode condenar a política de assistência social e deixar ao relento pessoas que hoje são acolhidas em moradias contratadas pela prefeitura.
Pesadelo na vida de Melo
O que se viu nas horas que se seguiram ao incêndio na Pousada Garoa foi o tradicional jogo de empurra. O proprietário diz que estava tudo certo e a prefeitura defende a contratação da empresa dizendo que ela cumpriu todas as exigências do edital. Como explicar, então, um incêndio que matou 10 pessoas e feriu 15?
A pergunta não é sobre a origem, que pode ser um curto-circuito ou até um fogareiro usado por quem não tem como aquecer a marmita, mas sobre o que impediu que mais gente escapasse.
O prefeito Sebastião Melo esteve no local da tragédia no início da manhã, assim que chegou de Flores da Cunha, onde passara a noite. Prometeu apuração e admitiu rescindir o contrato com a rede Garoa, mas não conseguiu explicar como ninguém averiguou as condições dessa pousada.
As mortes serão um pesadelo nos próximos meses do prefeito, pré-candidato à reeleição. Adversários costumam ser impiedosos em campanhas eleitorais.