Diante de um pedido de desculpas por estar tomando seu tempo, o agricultor Raul Zilio, 61 anos, de Muçum, baixa os olhos e diz em tom de desolação:
— Não tem problema. Não temos nada para fazer mesmo.
Um mês depois da tragédia que abalou o Vale do Taquari, o programa Gaúcha Atualidade revisitou alguns casos emblemáticos para conferir se a prometida ajuda dos governos estadual e federal já chegou a quem precisa dela. O casal Zilio é conhecido dos ouvintes e dos leitores porque Janete é protagonista de uma das histórias mais incríveis dessa enchente, contada pelo repórter Fábio Schaffner.
Janete é a mulher que desceu 18 quilômetros rio abaixo agarrada a um pedaço de telhado de zinco da casa em que estava com o sogro Deoclydes José, de 94 anos, os cunhados Sérgio, 66, Roque, 61, e Terezinha, 68. Sérgio e Terezinha morreram. Roque sobreviveu agarrado à copa de uma árvore. Um mês depois, o corpo de Deoclydes ainda não foi encontrado e a família sofre por não poder dar a ele um enterro digno e, então, viver o luto.
Os Zilio viviam numa pequena propriedade em Linha Alegre, a 20 quilômetros de Muçum. No início do ano tinham inaugurado a casa nova, que custou R$ 300 mil. A enchente levou a residência, duas casas velhas, os galpões, dois caminhões, as vacas de leite e tudo o que a família tinha. O Taquari também arrasou a plantação de verduras, que ajudava a compor a renda, e o parreiral, de onde tirariam o dinheiro para sobreviver no verão.
O casal está vivendo na casa de um irmão de Janete e a única ajuda que recebeu até agora foram roupas usadas, calçados e uma cesta básica. Raul não quer empréstimo, porque não teria como pagar. Gostaria de recompor o parreiral, mas o investimento é elevado e só começa a produzir três anos depois. O melhor momento de plantar as verduras também já passou. Os dois não sabem o que fazer e só se consolam com o fato de estarem vivos.
— Linha Alegre agora é Linha Triste pra nós — diz Janete, uma mulher de poucas palavras e muita fé em Deus.
O que o casal mais quer é uma casa. Estão inscritos em um programa do governo, em parceria com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, mas não têm ideia de quando voltarão a ter casa própria. A única renda do casal é a aposentadoria de Janete, de um salário mínimo. Zilio aguarda a resposta do INSS ao seu recurso, já que, embora tenha trabalhado na roça a vida inteira, a aposentadoria como trabalhador rural foi negada por ele ser proprietário de dois caminhões velhos.
Os dois, que nunca pediram nada a ninguém e ajudavam quem precisavam, hoje dependem da solidariedade de desconhecidos até para conseguir uma peça de roupa íntima.
Órfãos da ponte
Antes da enchente, uma ponte rodoviária construída ao lado da estrutura sobre a qual passava o trem no roteiro da imigração (encerrado em agosto) permitia o ir e vir das pessoas que moram do outro lado do rio, entre Muçum e Roca Sales.
A enchente do Taquari derrubou essa ponte e os moradores do outro lado ficaram com duas opções para chegar a Muçum: ou vão por uma estrada que margeia o rio até Roca Sales ou caminham sobre a ponte férrea, como faz o jovem Eduardo Bandeira.
Eduardo trabalha em um posto de gasolina, a partir das 6h da manhã. Sai de casa às 4h e, ainda escuro, caminha sobre a ponte férrea. Um perigo, considerando-se as dimensões da chamada Ponte Rodoferroviária Brochado da Rocha, com extensão de 289m de comprimento.