Se as Forças Armadas não estivessem comprometidas com a democracia e, portanto, com o seu papel constitucional, o vencedor da eleição de 2022 não teria tomado posse. Era isso que Jair Bolsonaro aventava e que só não prosperou porque não encontrou apoio armado para um golpe de república bananeira. Escaldados com o desgaste que resultou dos 21 anos de ditadura, os comandantes do Exército e da Aeronáutica não deram trela para a armação. Na versão do ex-ajudante de ordens Mauro Cid, contada em delação premiada, só a Marinha teria mostrado disposição para entrar na aventura.
Mauro Cid não é um comunista infiltrado nas Forças Armadas. É um tenente-coronel que se deslumbrou com o poder de braço direito de Bolsonaro e fez coisas que sua formação militar recomendaria evitar, sempre com o pretexto de que estava cumprindo ordens. Cid é testemunha-chave das iniquidades engendradas no Palácio da Alvorada após a derrota na eleição. Outros militares, hoje na reserva e em silêncio obsequioso, se empolgaram com o roteiro que impediria a posse de Lula e instituiria um governo de exceção em nome de garantir a lei e a ordem.
A delação de Cid é mais ampla e nem todos os detalhes são conhecidos, mas a parte mais grave é essa — e não a falsificação do cartão de vacina ou a venda das joias recebidas dos árabes. O conjunto do que contou à Polícia Federal pode não ter força para desconstruir a imagem de mito aos olhos dos seus aguerridos seguidores, mas expõe ao mundo o Bolsonaro real. Não que seja surpresa a vocação ditatorial de um homem que tinha o coronel Brilhante Ustra, notório torturador, como ídolo.
Bolsonaro está inelegível, por decisão do Tribunal Superior Eleitoral, mas os episódios de novembro e dezembro de 2022, somados com o quebra-quebra de 8 de janeiro, formam um conjunto que dá sentido às peças isoladas.
Se tivesse dado certo a explosão da bomba colocada em um caminhão-tanque nas proximidades do Aeroporto Internacional de Brasília, às vésperas do Natal, o atentado (com dezenas ou centenas de mortos) justificaria a decretação do estado de sítio. Felizmente, deu errado, as vidas foram poupadas e os responsáveis (na verdade, irresponsáveis) estão presos. Terão oportunidade de dizer quem teve a ideia e quem financiou o fracassado atentado terrorista.
Como os militares não quiseram entrar na canoa furada, civis aloprados acharam que criando a confusão o golpe seria consumado, mesmo depois de o presidente eleito ter tomado posse. O quebra-quebra no Palácio do Planalto, no Congresso e no Supremo (com a polícia do Distrito Federal desmobilizada por ordem de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça) poderia ter dado margem a um decreto de garantia da lei e da ordem, mas Lula optou pela intervenção no Distrito Federal e retomou o controle da situação.
Aliás
Não é coincidência que uma minuta do roteiro golpista tenha sido encontrada na casa de Anderson Torres e outra no celular de Mauro Cid. Os dois faziam parte do grupo restrito que tinha contato com Bolsonaro nos dias de depressão por não ter conseguido respaldo das Forças Armadas para se perpetuar no poder.