O acaso fez com que no dia da morte de Lya Luft eu estivesse na sua praia, a Torres de onde escrevo estas linhas para falar da mulher complexa que conheci e com quem troquei mensagens até seus últimos dias. Tivemos divergências políticas, mas sempre nos respeitamos. Lya fez escolhas erradas e teve grandeza para reconhecer que se deixou levar pela onda, mas não se afogou. Ela que tanto apanhou da esquerda quando escrevia na Veja, virou alvo da direita por uma opinião publicada na Folha de S.Paulo e um dia me escreveu se dizendo chocada, porque achava que “as palavras de uma velha escritora que vive reclusa não têm tanta importância”.
As palavras sempre têm importância. Em ZH, Lya escrevia aos fins de semana e fugia dos assuntos de política. Falava de amor, de família, de envelhecer com serenidade. Compartilhou com os leitores a sua dor quando o filho André morreu no mar. O mesmo mar que ela amava tanto roubou-lhe o filho que amava de maneira incondicional.
Lya amava os filhos e os netos com tanta intensidade que dividia suas conquistas. Contou-me toda feliz quando as netas gêmeas foram aceitas em universidades dos Estados Unidos e, há pouco, quando um dos netos entrou para a Faculdade de Direito. A filha Susana, pediatra que transforma o desespero de mães em confiança de que seus filhos serão bem cuidados, era sua guardiã. Em meio à pandemia, cansada da reclusão mas convencida de que o isolamento era necessário, Lya me contou: “Minha filha está com olhos de falcão em cima de mim. Qualquer tossezinha ela enlouquece”.
Nos obituários de Lya, constou que ela foi casada três vezes. Preciso fazer uma correção. Foram quatro. Primeiro com o grande Celso Pedro Luft, uma paixão intelectual que virou namoro, noivado, casamento e filhos. Ela tinha 24 anos e ele 42 quando se casaram. Divorciaram-se e Lya se apaixonou pelo psicanalista Hélio Pellegrino e foi morar no Rio. Lá ficou viúva, voltou para Porto Alegre e recasou com Celso. Um ano depois, ele morreu.
Quando se dizia no outono de sua vida surgiu o amor maduro. Lya conheceu o engenheiro Vicente de Brito Pereira em um almoço no Jardim do British Club. Foram mais de 18 anos de convivência e companheirismo, dividindo bons e maus momentos na casa da velha bruxa, como ela chamava a morada de Canela com seu bosque de contos de fada, ou no apartamento de Porto Alegre, com vista para o campo de golfe do Country Club.
Almocei com ela nesse apartamento em um dia de primavera. Concordamos que ela tinha comprado a paisagem e que o apartamento veio de brinde. Volta e meia, ela me mandava foto das cachorrinhas que tratava como filhas. Eram mais uma de suas paixões.
Conheci primeiro a obra, com A asa esquerda do anjo e As Parceiras. Depois a pessoa, de quem me aproximei cautelosa, porque já era uma escritora famosa. Um dia nos encontramos na entrada do estúdio da TVCOM e conheci a outra Lya, a pintora que aprendera com Lou Borghetti a fazer poesia com os pincéis. Suas marinhas são poemas que ora expressam a calmaria dos dias ensolarados, ora as ondas das tempestades. Lya sofreu muito com a morte precoce de Lou, de quem era discípula e melhor amiga. Muitas vezes falamos nos dias sombrios que se seguiram a essa perda. Combinamos que eu iria a seu apartamento ver os quadros que produzira no ateliê da Lou ou em casa, mas veio a pandemia e com ela o afastamento.
Suas últimas mensagens foram curtas. Estava cansada de hospital, escrevia palavrões para falar da doença. Quando soube que estava internada pela primeira vez, perguntei o que acontecera. Resposta direta: “Câncer no pulmão com metástase. BIG SHIT”. Algum tempo depois ela me escreveu toda alegre que seu livro Perdas e Ganhos ganharia uma nova edição em Portugal pela editora Infinito Particular. Passei para a colega Juliana Bublitz, que fez uma nota para o Informe especial de ZH.
O saudoso Moacir Scliar tinha uma série chamada “Nomes que condicionam destinos”. Lya poderia estar lá. Porque Lya lia tanto que virou escritora. Lya lia Goethe no original e virou tradutora para que quem não entende alemão pudesse ter acesso a obras da literatura universal.
Minha última mensagem para Lya foi em 16 de novembro, cumprimentando pela homenagem da Academia Rio-grandense de Letras. Ela disse que iria para casa na terça-feira. Passou o Natal com a família, como era seu desejo, e foi encontrar André, Lou, Celso, Hélio e seus afetos em outra dimensão.