Estava meio desligada do mundo, passando as férias numa praia do Caribe, quando soube da morte de dona Eva Sopher. Não pude me despedir dessa amiga querida. Melhor assim. De dona Eva prefiro guardar a imagem de guardiã do Theatro São Pedro, com um molho de chaves preso à cintura, conduzindo-me pelos recantos desconhecidos do público e contando histórias vividas em tantas décadas de dedicação à arte. Minha preferida é a de como uma mobilização de artistas garantiu sua permanência no São Pedro quando tentaram substituí-la pela mulher de um dos líderes do PDT, no governo de Alceu Collares.
Para sempre vou lembrar dos nossos almoços no Duatos, que ela arrematava com um copo de água quente, servido por um garçom gentil, o Chico Buarque mulato, como nós o definíamos, pela semelhança com o cantor, inclusive na cor dos olhos. Os olhos dela brilhavam por trás dos óculos quando falava dos pequenos avanços da obra do Multipalco.
Imagino que tudo já tenha sido dito sobre essa mulher extraordinária nos atos de despedida, mas eu não poderia retornar plenamente ao trabalho sem falar do seu legado. Sou uma privilegiada por ter convivido com dona Eva nos últimos anos. Pelas mãos dela, tornei-me integrante da Associação de Amigos do Theatro São Pedro e em respeito a sua memória pretendo continuar contribuindo.
Acompanhei sua luta obsessiva pela construção do Multipalco, ouvi seus desabafos contra a burocracia e contra as regras do jogo, que a impediam de obter de empresários, via Lei de Incentivo à Cultura, doações superiores às autorizadas pelo Conselho Estadual de Cultura. Era uma senhorinha rebelde, que exasperava os governos de diferentes partidos porque queria fazer as coisas do seu jeito. Vivia para o São Pedro e dele tirou a energia que permitiu passar dos 90 anos lúcida e saudável. Mas, como o corpo não é eterno, na primavera de 2016, com 93 anos, sofreu o AVC que a tirou parcialmente de combate.
Nosso penúltimo encontro foi no Hospital Moinhos de Vento. Graças à generosidade das filhas Ruth e Renata, pude passar cerca de uma hora com ela, quando se recuperava do AVC. Era uma paciente impaciente: não combinava com a natureza dela ficar entre a cama e a cadeira, com um lado do corpo semiparalisado. Não muito tempo depois, a encontrei de cadeira de rodas no estacionamento do São Pedro. Mesmo com todas as limitações, tinha voltado ao trabalho.
No final de 2017, soube pela filha que a situação tinha se agravado. Aquele quadro não combinava com a mulher ativa que carregava o São Pedro nas costas e queria viver para inaugurar o Multipalco. Quando o coração parou, pensei na falta que dona Eva fará para o Rio Grande do Sul e para o Brasil. E lembrei de uma história divertida que ela contou quando me conduziu por um tour pelas obras do Multipalco. Estávamos na Sala da Música:
– Tu acreditas que essa porta larga aqui não estava no projeto que venceu o concurso? Tive que mandar os operários abrirem. Estavam levantando as paredes quando vim olhar e vi que só tinha uma portinha estreita. Me mostraram que era assim mesmo que estava no projeto. Chamei o mestre de obras e perguntei a ele: se esta é uma sala de música, por onde vai passar o piano?
Com a autoridade de quem pode não ter estudado arquitetura, mas tinha a arte no sangue, dona Eva mandou alargar a porta para que a Sala da Música pudesse ter um piano. Ou não seria uma sala de música.