De férias na Bahia, acordei com o celular mostrando 152 mensagens não lidas no grupo que usamos para nos comunicar na Rádio Gaúcha e vi que alguma coisa grave tinha ocorrido enquanto eu dormia o sono de quem está numa ilha em que não circulam carros. Ao saber da morte do nosso Paulo Sant'Ana, meu primeiro pensamento foi para o torcedor apaixonado que ele era: será que em seus últimos momentos ele soube que, aqui na Bahia, o Grêmio aplicou 3 x 1 no Vitória e voltou a se aproximar do Corinthians?
O segundo pensamento foi para o cronista que interpretava como ninguém o sentimento das ruas: o que Sant'Ana escreveria se resolvesse falar de Morro de São Paulo?
É possível que discorresse sobre a beleza das mulheres negras, mas é mais provável que escrevesse sobre a dura vida dos homens que passam o dia subindo e descendo ladeiras transportando malas de turistas em carrinhos de mão. Sant'Ana transformaria o cotidiano desses homens numa crônica arrebatadora. Sant'Ana perguntaria o que será deles quando não tiverem mais força para subir o morro com cinco malas empilhadas, que renderão R$ 75.
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Sant'Ana era imbatível na arte de emocionar. E também de provocar. Tivemos embates memoráveis e gestos de carinho e respeito nestes quase 25 anos de convivência. Como era contra os pardais e eu defendia os controladores de velocidade com veemência, apelidou-me de "pardaleira". Como fumava um cigarro atrás do outro e eu sou antitabagista, dizia que eu era chata por não deixar que fumasse na minha sala. Achava que, por dar atenção demais aos meus filhos, eu nunca seria uma colunista tão bem-sucedida quanto ele. Queria que eu me entregasse ao trabalho como ele se entregava. Mas foi dele que recebi um elogio inesquecível quando estava começando na coluna. Disse que eu era um novo Ronaldinho do texto. À época, Ronaldinho estava no auge e era o ídolo dele.
Sant'Ana detestava férias porque alguém ocuparia seu lugar na penúltima página de Zero Hora, um território que considerava sagrado como o Olímpico e, depois, a Arena onde recebeu as últimas homenagens dos fãs. Ficava indignado com os leitores que diziam começar a ler ZH pela minha coluna ou pela de qualquer outro colega. Ele tinha de ser o primeiro. Sempre. Tinha ciúme de quem tomava café com nosso amigo Nilson Souza, porque achava que estávamos roubando um tempo do qual se considerava dono. No período em que esteve doente, Nilson foi visitá-lo incontáveis vezes. Até os últimos dias, foi um elo entre ele e a ZH.
Por coincidência, eu também estava em uma ilha (San Andres, na Colômbia) no dia 26 de julho de 2015, quando escreveu sua última coluna em ZH, antes de se afastar para tratar da saúde. Antes de ler o texto, soube por leitores que ele atribuía a mim uma intimidade que não tenho com o governador José Ivo Sartori. Dizia que Sartori me repassava informações exclusivas, como as do aumento do ICMS e do atraso no pagamento dos salários dos servidores, e combinava de desmenti-las em outro jornal. Exagerado como era, Sant'Ana escreveu que se eu não tivesse tirado férias o Estado confessaria sua falência.
Se eu não conhecesse os arroubos do Sant'Ana ou se não soubesse identificar uma ironia, teria ficado chateada. Mas eu conhecia Pablo o suficiente para saber que aquela era uma boa intriga e até mesmo uma homenagem ao meu trabalho de garimpeira de informações. Os "furos" que dei sobre a crise nas finanças, desmentidos por membros do governo e pelo próprio Sartori em um primeiro momento, foram confirmados integralmente nos dias seguintes.
Não pude me despedir de Sant'Ana. Melhor assim. Prefiro guardar dele a lembrança do homem que declamava Augusto dos Anjos como se estivesse em um palco, do colega que exigia atenção integral a seus discursos e dos arroubos de quando me pedia para ler a coluna dia seguinte e antecipava o elogio:
– Nesta eu me superei! Tu vais ver que está genial!