O jornalista Vitor Netto colabora com o colunista Rodrigo Lopes, titular deste espaço.
A Polícia Civil do Rio de Janeiro prendeu neste domingo (20) mais um suspeito de envolvimento na emissão de laudos falsos que resultaram na contaminação por HIV de pacientes transplantados.
A coluna conversou com o ex-ministro da Saúde (2007-2010) e médico sanitarista, José Gomes Temporão, sobre o Sistema Nacional de Transplantes e o que possivelmente ocorreu no caso do Rio de Janeiro.
O senhor esteve à frente do Ministério da Saúde, como funciona o sistema de doação de órgãos no Brasil?
Nós temos uma fila única nacional. Não há nenhuma diferença de renda, classes, zero. Qualquer brasileiro é inscrito nessa fila. Claro, nós temos uma fila para transplante de fígado, uma para de coração, uma para de rim e por aí. Os critérios são absolutamente rigorosos e claros. Tem critério de gravidade, tem que haver compatibilidade entre o doador e o receptor. Se o órgão a ser transplantado nos exames de rotina detectam alguma presença de vírus ou bactérias, esse órgão tem que ser descartado e não pode ser utilizado no transplante e não há nenhuma possibilidade de alguém furar a fila por questões econômicas. Alguém tem mais dinheiro, é mais poderoso? Não. Inclusive, cada transplante deve ser analisado, autorizado e certificado por vários médicos, não é apenas um médico que dá essa autorização. Então, é um sistema absolutamente seguro e, inclusive, queria chamar a atenção que tem toda a parte do transporte. Porque, às vezes, o doador está em Fortaleza e o receptor está no Rio Grande do Sul. E esse órgão tem que ser colocado em condições adequadas para que ele seja colocado num voo e ele chegue ao destinatário, ao receptor, em absolutas condições seguras de ser transplantado. Então, tem todo o protocolo para transporte, todo o protocolo para descarte, todo o protocolo para quem pode receber, quem não pode receber e é uma fila única, transparente, que orgulha a saúde pública brasileira.
Já ocorreu ou o senhor lembra de caso similar a esse do RJ?
Não, é um caso inédito, único, completamente fora do esperado. O Sistema Nacional de Transplante Brasileiro é conhecido no mundo inteiro, nós somos, depois dos Estados Unidos, o país que mais faz transplante de órgãos. Esse ano nós vamos ultrapassar, possivelmente, 30 mil transplantes, mas, ao mesmo tempo, nós temos 40 mil brasileiros aguardando na fila de espera por um órgão, por um rim, por um coração, por um outro órgão. Então, nós temos aí duas dimensões, eu diria que uma dimensão é o choque, a sociedade ficou chocada, como é que um programa tão respeitado, uma política de tanto sucesso, de repente, vai parar nas páginas policiais e aí se pergunta se um problema de polícia ou foi um problema de fragilidade de controles. Pelas informações que nós temos até agora, tudo aponta para o caso de negligência. Negligência com o uso inadequado de reagentes, negligência com protocolos, falta de formação adequada para quem realizou os exames. Tudo leva a crer que nós temos uma situação que é um ponto fora da curva e que não compromete, de jeito nenhum, a segurança do Sistema Nacional de Transplantes. Os potenciais doadores, os brasileiros, que se vejam numa situação de ter que autorizar a doação dos órgãos de um ente querido, a família, tem que estar seguros de que esse processo será feito de acordo com os mais rigorosos critérios técnicos, científicos, éticos e de saúde pública. Isso eu posso garantir que sim. Eu vejo, na verdade, essa situação como muito deplorável, horrível, para os pacientes, imagina, o paciente transplantado já tem que tomar uma medicação para evitar a rejeição do transplante, agora terá de tomar uma outra medicação para tratar a doença contraída através do transplante. É uma situação dramática para os pacientes, mas eu diria que é uma situação absolutamente isolada e que exige das autoridades a mais rigorosa apuração e punição dos envolvidos.
O senhor falou que houve negligência. Por parte de quem pode ter ocorrido negligência?
As informações que nós temos, que ainda são informações veiculadas pela imprensa, porque tanto a Polícia Federal, como a Polícia do Estado, como o Departamento de Auditoria do Ministério da Saúde, o DNASUS, ainda estão fazendo as suas avaliações, mas não temos ainda nenhuma conclusão oficial. Mas algumas pessoas foram presas. Então, ao que parece, um laboratório se apresentou como capaz de realizar um conjunto de exames, entre eles esse exame de detecção em órgãos a serem transplantados e não cumpriu. Não cumpriu por falta de capacidade técnica, não cumpriu por desorganização, não cumpriu por omissão, não cumpriu por desvio. Enfim, as respostas a essas perguntas terão que ser dadas pela investigação. Então é por isso que tudo aponta para uma situação de negligência. O laboratório deveria ter uma conduta, um desempenho que não aconteceu na prática e colocou em risco a vida de várias pessoas. Ainda se está levantando, se existem outras situações semelhantes ou se isso está limitado apenas a esses seis pacientes. Isso ainda está sendo investigado.
Quando uma família autoriza a doação. Como são realizados os testes?
Exame é muito rápido. São todos automatizados. Inclusive, esse exame especificamente de detecção do HIV não é nem um exame complexo. O complexo é que você tem que fazer uma auditoria permanente, você tem que checar a validade dos reagentes, você tem que fazer prova e contraprova. Tem todo um protocolo que deve ser seguido. Muitas vezes o próprio hospital onde o paciente doador está pode fazer o exame. Em outras situações o hospital onde o potencial doador está, não tem condição de fazer esse exame. Mas isso é realizado o mais rápido possível, não é uma coisa que demore dias. É uma coisa que demora poucas horas. Então, nesse caso, com certeza o que aconteceu foi isso. Foi feita uma licitação, ninguém sabe exatamente em que condições se deu essa licitação. O laboratório se apresentou como capaz de realizar uma série de exames e na prática se viu que houve problemas na realização, no desempenho. E parece que os problemas são de origem criminosa. Porque inclusive a polícia já prendeu preventivamente algumas pessoas envolvidas nessa situação.
Esse caso pode gerar preocupação e medo na população?
Nós temos que ter transparência, isso deve ser apurado com muito rigor. Os envolvidos têm de ser punidos rigorosamente, mas ao mesmo tempo nós temos de passar para a sociedade, e principalmente para as famílias brasileiras, que não há nenhum tipo de risco de lisura ou de integridade que afete o Sistema Nacional de Transplante. Então isso é muito importante, é seguro autorizar a doação. O Brasil faz transplante de órgãos há décadas, nunca aconteceu um episódio como esse, é a primeira vez. Então é muito importante passar essa mensagem, porque os 40 mil brasileiros que estão na fila guardando um órgão dependem da conscientização da população brasileira sobre a importância da doação.
O que é preciso olhar a partir daqui para frente?
Foi um caso fora da curva, mas mesmo assim o Ministério da Saúde está fazendo uma revisão rigorosa de todos os protocolos, critérios, etapas, o passo a passo de todas as etapas que têm que ser superadas e que envolvem o processo tanto de captação de órgãos como da realização dos transplantes. Para ver se existe alguma coisa a ser aperfeiçoada, sempre há alguma coisa a ser aperfeiçoada. Mas eu quero reiterar a minha segurança de que nós estamos diante de um caso único, criminoso, e que não reflete, não coloque em risco nem a lisura, nem a competência técnica, nem o orgulho que nós brasileiros devemos ter do nosso Sistema Nacional de Transplantes. Ao mesmo tempo que nós temos uma situação muito ruim, que exige transparência, exige providências imediatas, e a polícia está demonstrando isso. E, por outro lado, nós temos que ter o cuidado de que as pessoas se mantenham seguras de que doar é uma ação humanitária fundamental que vai salvar a vida de milhares de brasileiros.
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