Orgulhoso em relação aos índices de sua gestão - entre eles o de melhor universidade federal do país, segundo o Inep - e com relação ao saldo de R$ 500 milhões que deixará para a nova administração, o reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Carlos Bulhões promete fazer uma transição "decente" para a chapa 3, liderada por Márcia Barbosa e Pedro Costa, que venceu a eleição para a reitoria durante a reunião do Conselho Universitário (Consun) realizada nesta sexta-feira (19).
- Vou fazer o que não fizeram comigo - afirma.
Bulhões, que entrega o mandato em 20 de setembro, referia-se ao período após sua nomeação pelo presidente Jair Bolsonaro, em 2020. A decisão contrariou a tradição de o chefe do Executivo escolher, dentre os nomes da lista tríplice, o vencedor da consulta entre a comunidade acadêmica e no Consun.
Bulhões foi o terceiro colocado na lista. Durante uma hora e meia de entrevista à coluna, na sede da reitoria, nesta segunda-feira (29), o reitor disse não guardar mágoas, comentou os processos de impeachment a que foi alvo e analisou os resultados da gestão.
A seguir, uma síntese da conversa.
O senhor já se considera de saída, começou a limpar as gavetas?
Ainda tem até o dia 20 de setembro, então até lá tenho prestações de contas, ainda respondo ao MEC (Ministério da Educação) por toda parte legal. Até lá, vou fazer o que não fizeram comigo: uma transição decente. Vou chamar quem ganhou. Acho que quem ganhou está ótimo. "Qual é o melhor candidato?" O que ganhou, está entendendo? A reitora, a futura reitora, a Márcia (Barbosa), eu a conheço há 20 anos, porque ela era diretora de uma faculdade lá no Campus do Vale. Na sexta-feira, a gente entregou ao Ministério da Educação os resultados, conforme a legalidade dos processos da nossa eleição.
O senhor já considera Marcia Barbosa a reitora, mesmo sem a nomeação do presidente?
Em face até da campanha, do reconhecimento das duas outras chapas, sim. A gente vai adiante, de maneira muito respeitosa, vou entregar (a gestão da reitoria). Pretendo, aqui nessa sala, passá-la simbolicamente. A gente deixa um belo legado para ela trabalhar e continuar.
Pergunto isso porque, na eleição passada, o processo foi diferente: o senhor foi o escolhido pelo então presidente Jair Bolsonaro, mesmo tendo ficado em terceiro lugar na lista tríplice.
Não é uma eleição, é uma consulta eleitoral para a formação da lista tríplice, que é ofertada ao presidente da República. No caso do presidente Bolsonaro foram cem reitores, no caso do presidente Lula serão cem (a serem nomeados), mas o processo de lista tríplice também funcionam no Ministério Público e em várias outros órgãos. Às vezes, se escolhe até gente de fora da lista tríplice. No meu caso, sou apenas um cumpridor da lei. Estou no serviço público há 40 anos. Fui eleito cinco vezes aqui na UFRGS, e, em todas tinha lista tríplice. Entrei muito tranquilo. À época, me apontavam o dedo, lembro até hoje: "O senhor vai ser o último da lista tríplice. O senhor não tem vergonha?". Isso nunca me abalou. Como bom servidor público, vou cumprir o que assinei: "Declaro, para os devidos fins, que se meu nome estiver na lista tríplice, aceito ser nomeado reitor". Nunca tive perturbação. Consegui montar uma estrutura de governo, consegui elevar os índices e melhorar indicadores em comparação com outras universidades brasileiras. No finalzinho do ano passado, o Inep nos colocou em primeiro lugar entre as universidades federais brasileiras e passamos duas estaduais paulistas, só ficou faltando a Unicamp, porque eu não tive tempo suficiente para passá-la (risos).
Por conta da sua nomeação por Bolsonaro, o seu mandato foi questionado desde o primeiro dia. O senhor guarda mágoas?
Não. Primeiro, porque a razão não foi essa. Foi fruto de violência, de uma discriminação, escutei piada até pelo fato de eu ser nordestino. Não sou muito de guardar mágoas: rancor é um veneno que a gente toma esperando que o outro morra. Não tenho tempo para isso. Mas a razão não foi essa que você apontou. A razão foi que os candidatos que determinado grupo gostariam de colocar não foram adiante. Botei como bandeira número 1 da minha gestão o financiamento do Ensino Superior, que é um problema mundial. Segundo: para conseguir a estrutura de financiamento, a gente tem de interagir com a sociedade do planeta. Então, essas interações foram nossa segunda bandeira. E a terceira bandeira foi combater a evasão, a repetência e melhorar os índices. Isso me absorveu o tempo todo. Não dava tempo de ficar pensando em política. Botava minha cabeça no travesseiro de noite e me acordava de manhã, olhava para os pés, agradecia e ia trabalhar.
Qual foi o momento mais difícil, quando os professores pediram em duas ocasiões o seu impeachment?
Se isso fosse adiante, eu seria vítima de uma violência política descomunal. Porque eu tinha um mandato, que eu estou encerrando agora de forma muito nobre, entregando um monte de resultado. Volto a dizer: não sou nada. Quem é a coisa mais brilhante aqui? A UFRGS, que está aí há 129 anos.
Acusam o senhor de ser antidemocrático por não respeitar decisões do Conselho Universitário.
Autoritário.
Por que o senhor não respeitava decisões do Consun?
A gente enfrentou a pandemia integralmente, a enchente, eu enfrentei o pior orçamento da história integralmente. Tenho elementos que nos puxam para baixo. Gosto de motivar os pró-reitores dizendo: "Apesar disso, nós subimos". A gente incrementou muito a eficiência e a eficácia do processo de gestão. A gente fez mais com menos. Em março de 2020, parou tudo (devido à pandemia). Com base nisso, houve um represamento de atos administrativos que o Consun deveria tocar. No primeiro ano, eu administrei. Eu ia à primeira sessão e era ofensa, ofensa, ofensa, ofensa. Não tenho problema nenhum. Eu nem me enxergava ali naquelas ofensas. Porque, de novo, eu estava vendo que havia todo um jogo psicológico, parte de, vamos dizer, uma guerra psicológica em cima da cabeça dos outros. Com isso, não me ofendo. Eu lembro também que eu fui oficial de infantaria 40 anos atrás. E tive treinamento para isso.
O senhor foi militar?
É, fui. E tive reconhecimento e tal. Mas muitos anos atrás. Enquanto engenheiro, sou muito preocupado com eficácia e eficiência. E o tempo de todo mundo é o recurso escasso. Aí eu gastava uma sessão (do Consun) levando xingamento. Terminava, e eu só agradecia: "Muito obrigado, conselheiro". "Próxima manifestação". Aí todo mundo se manifestava lá, falava o que queria. Eu ficava olhando. Quando chegava na outra semana, a gente ia para os atos administrativos. Porque, regimentalmente, eu já tinha feito o expediente. Então, tinha de entrar e eu tocava isso. Resultado, no primeiro ano, aquele estoque de mais de 750 processos administrativos foi vencido até dezembro. Quando acabou a pandemia, voltei para a função número 1 de reitor da UFRGS: de representação, de interagir com a sociedade. Voltei para os meus pilares. Podiam até me avacalhar ou achincalhar o meu nome. Agora, a figura do reitor é a UFRGS. É a UFRGS que você está avacalhando. Toda a ausência minha, nesse período, foi justificada, está nos órgãos oficiais. A ponto de eu deixar agora como legado, de saldo, meio bilhão de reais para a próxima administração.
Como responde às críticas do Consun sobre o senhor não ouvi-los e desrespeitar as decisões deles?
Olha o Estatuto. Você já viu que eu sou muito legalista. O Estatuto e Regimento Geral da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que é a nossa Constituição, tem 28 vezes a expressão "de acordo com a lei", "na forma da lei", "segundo a lei". Basta... Tem essa confusão entre autonomia e soberania. O pessoal fala assim: "Ah, o reitor é antidemocrático". Ué? Eu sigo a lei. A coisa mais estrita é seguir a lei. Eu entendo que 500 deputados, que foram eleitos por milhões de brasileiros, fizeram a lei. Se está ruim, muda a lei. Agora, eu não posso mudar uma lei federal aqui no Consun. A pandemia do Covid acabou na UFRGS em dia 18 de março desse ano. Foi quando a gente conseguiu casar o calendário acadêmico da UFRGS com o calendário civil. Até aquela data, a gente vinha repondo aulas. Eu entregaria o calendário para a próxima administração todo zerado. Seis semanas depois, veio a enchente. Aí atrasou um pouco, mas pelo menos já foi feito, refeito, analisado. Vai comprimir um pouco ainda esse ano. Mas, em março de 2025, se não tiver nenhum problema, entra de novo no ano normal.
Como ter autonomia se o processo de escolha da reitoria remonta ao período imperial?
O primeiro ponto a ser enfrentado é a estrutura de financiamento. A real autonomia vai ser quando a gente puder tomar decisões, sejam elas quais forem, e arcar com as consequências do financiamento. Enquanto isso não existir, a gente está longe. Acho que tem que ser resolvido, isso vai talvez levar algum tempo a mais. A UFRGS é a sociedade gaúcha, tudo que está ali do lado de fora, está aqui dentro. Mas a sociedade gaúcha como um todo enfrenta essa polarização danada. Em vários locais me perguntaram, você é de direita ou de esquerda? Eu sou nordestino. É isso que é relevante. O Duque de Caxias tinha uma expressão: "Brasileiros devem estar ombro a ombro, nunca peito a peito", brigando um contra o outro. Se você tem uma opinião diferente da minha, está bom, viva a diferença, talvez você esteja correto, mas eu não quero brigar com ninguém por conta de uma opinião diferente.
O senhor é a favor de mudar o processo de escolha do reitor?
Mude! Mude tudo, se não concorda. Mas é lá (no Congresso). Não posso, na mesa de bar, chegar e mudar. Na questão da paridade (o peso dos votos entre professores e estudantes na eleição), é 70% da participação do membro do corpo docente. Isso não mudou nada.
Por que o senhor anulou a decisão do Consun que alterou a paridade?
Por ser ilegal. Por que é 70% (o peso dos votos para professores) e não 60%? Acho que está tudo errado. Se a gente vai mudar, então vamos mudar para quem está na nossa frente. Como é o processo em universidades americanas, chinesas, gregas ou inglesas? Vamos fazer um grupo de trabalho e montar isso para valer. Mas, enquanto estiver vigorando essa lei, temos de obedecê-la.
É a favor de que seja aberta essa discussão?
Tem de abrir uma discussão, porque é um elemento de tensão a cada quatro anos. É improdutivo.
Não falei mal do presidente Bolsonaro, e também não falei mal do presidente Lula. Na verdade, não falei mal de ninguém.
CARLOS BULHÕES
Reitor da UFRGS
Como foi lidou, durante o governo Bolsonaro, com cortes no orçamento?
Restrição a gente teve diariamente. A imprensa sempre me demandava opiniões em relação ao dinheiro. Ora, mas, como funcionário público, na minha cabeça, eu entendia o seguinte: a minha chefia é o ministro da Educação. Eu vou lá e reclamo. Agora, para ir à praça pública, cuspir no prato que eu estava comendo, eu teria que pedir demissão.
O senhor evitou falar mal do chefe?
Seria como ser desleal. Não falei mal do presidente Bolsonaro, e também não falei mal do presidente Lula. Na verdade, não falei mal de ninguém. Eu tento com o que eu tenho, e isso foi o que eu aprendi, fazer o melhor possível.
Como o senhor entrega a UFRGS para a nova gestão? O senhor falou em R$ 500 milhões de saldo.
Meio bilhão e com todas as contas em dias. E tenho coisas a ofertar, em uma escala brasileira: a questão dos diplomas, por exemplo. Esse é outro grande feito. Tão grande que a Organização Pan-Americana de Saúde queria fazer toda a América do Sul. Em 2021, participamos de uma licitação para criar cursos técnicos para a saúde, para gestão comunitária, controle de endemias, aquele pessoal que fica no interior do Interior. Tinha uma demanda do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde. A gente aplicou e ganhou. Começamos a trabalhar. Foram as faculdades de Medicina, de Enfermagem, Odontologia, Psicologia e Farmácia envolvidas, com conteúdo de saúde. Mas o grande desafio foi a gestão do contrato através da FAUFRGS (Fundação de Apoio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Entraram 190 mil inscritos na primeira turma. Formaram-se 186 mil em uma tacada no ano passado. O curso é semipresencial, metade pela EAD, metade por um supervisor do estágio. Esse diploma de profunda utilidade pública deu tão certo que a Confederação Nacional dos Trabalhadores na área da saúde pressionou a ministra para ter um segundo curso, que está ficando de presente na próxima administração. Nos últimos 60 anos, a UFRGS, em cada período de reitor, entrega à sociedade 20 mil diplomas. Com esse programa, a gente saiu de 20 mil para uns 205 mil. Quebrou a banca.