Naquele 27 de janeiro de 2013, eu era editor de Capa de Zero Hora. E aquela primeira página do jornal do dia seguinte, com a notícia do incêndio da boate Kiss, eu nunca queria ter feito. Lembro que procuramos, colegas editores e eu, referências de publicações internacionais após os atentados nos Estados Unidos em 2001 em busca de exemplos de como retratar o horror. A Kiss era o nosso 11 de Setembro.
Por fim, decidimos por uma página inteira preta, a foto reduzida de uma moça usando um chapéu gauchesco debruçada sobre um caixão. Acima, em tons sóbrios, apenas o logotipo do jornal e a inscrição: "Santa Maria, 27/01/2013". Não havia manchete, como se o Jornalismo não achasse palavras adequadas para definir aquilo tudo. Em certas ocasiões, de fato, não as encontramos.
Tempos depois, como repórter, entrei na Kiss, acompanhado do fotógrafo Jefferson Botega. Flávio Silva, pai de Andrielle, era o guardião das chaves da boate. Enquanto caminhávamos lá dentro, em total escuridão, eu imaginava o que passava pela cabeça do Flávio, nosso guia por aquele local desgraçado: os guarda-corpos que impediram a saída de centenas de pessoas, os espelhos que refletiram, antes da tragédia naquela noite, rostos enfeitados de jovens que saíram para se divertir, os mictórios com desenhos como o de Coringa, que me causaram má impressão, e a armadilha do banheiro feminino, onde estava a janela concretada que enganou muita gente na expectativa de que fosse uma saída.
Não tenho lugar de fala para opinar sobre o desmonte do prédio da Kiss, iniciado nesta quarta-feira (10). Essa decisão cabe aos pais e amigos das vítimas. Mas confesso meu sentimento ambíguo. Materialista que sou, sinto que, derrubar as paredes da boate é como arrancar um último pedaço da história daquela maldita noite.
Ao mesmo tempo, reconheço, o prédio é como uma ferida aberta no centro de Santa Maria - e na alma do Rio Grande. Talvez, passados 11 anos, seja melhor mesmo olhar pra frente, sem esquecer o passado. Transformar aquele lugar sombrio de concreto e tijolo em uma área aberta, com verde e muito ar puro - como, aliás, Nova York soube fazer na região onde ficavam as torres gêmeas. No fundo, o que ficam são as memórias. E essas não morrem. Jamais.
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