Há várias formas de analisar as eleições na Espanha, no domingo (23) - e todas têm suas nuances.
A interpretação mais fácil - logo equivocada - é da suposta vitória da direita, simplesmente porque o Partido Popular (PP) conseguiu o maior número de deputados no pleito (136).
Essa é uma armadilha comum de se cair quando olhamos para um país onde o sistema de governo é parlamentarista, caso espanhol. Nessas situações, não basta conquistar o maior número de cadeiras. Para governar, ou seja, eleger o primeiro-ministro (que na Espanha se chama presidente de Governo) e formar um gabinete, é preciso conquistar a maioria das vagas no parlamento. Como são 350 cadeiras, são necessários no mínimo 176. Daí porque nem o PP nem o Partido Socialista Obrero Español (PSOE), do atual chefe do Executivo, Pedro Sánchez, podem se dizer realmente vencedores. Ao menos por enquanto. A legenda de Sánchez elegeu 122 deputados.
Mas, antes de falarmos sobre os números e de quem realmente tem chances de consagrar-se vencedor, vamos a outras interpretações possíveis de serem extraídas das urnas.
A primeira e muito importante é que os espanhóis disseram "não" à extrema direita, representada pelo Vox, legenda anti-imigração, xenófoba, contrária às causas LGBTQI+ e eurocética. O partido criado em 2010 a partir de dissidentes do PP contava com 52 deputados na última legislatura e, agora, contará com 33. Ainda é a terceira força política da Espanha e pode também integrar o governo, caso o PP consiga formar uma aliança de direita e extrema direita, mas apenas os dois partidos (PP e Vox) não chegam à maioria. Precisam de outras legendas nanicas. Ou seja, por enquanto, os radicais estão fora de La Moncloa (como é chamado o Executivo). Os eleitores do PP, partido tradicional da política espanhola, aparentemente rejeitaram a possível união com o Vox. Ideias como a censura de peças teatrais e a proibição do uso da bandeira LGBTQI+ em prédios públicos foram demais para a ala centrista do PP.
A segunda interpretação possível é a resiliência de Pedro Sánchez, o atual primeiro-ministro. Sua derrocada era dada como certa até por muitos socialistas. Mas o político conseguiu sobreviver e pode se manter no poder, caso consiga reeditar a frente ampla de esquerda com partidos também nanicos e ligados a causas independentistas no País Basco e na Catalunha, alguns da extrema esquerda. Não a toa Sánchez é considerado um político de sete vidas.
Outra característica que surge das urnas é um aparente retorno da relevância dos partidos tradicionais. PP, que no parlamento anterior tinha 89 vagas, terá 136. O PSOE, que dispunha de 120 vagas, terá 122. Eles ainda não conseguem, como no passado, governar sozinhos - e essa é outra característica da nova da política espanhola: o poder é mais fragmentado e os grandes partidos precisam formar alianças com organizações regionais, com características, ideologias, princípios e bandeiras específicas. Daí o dilema: o que pode lhes dar o poder é o mesmo que corre o risco de lhes tirá-lo. Para conseguir chegar ao governo, o PP terá de se aliar ao Vox necessariamente, uma legenda rejeitada por muitos eleitores do partido pela herança franquista. No caso dos socialistas, terão que cortejar Junts e ERC, por exemplo, que defendem anistia e autodeterminação da Catalunha. Seus líderes já disseram que, em troca de apoio a Sánchez, desejam a transferência para a Generalitad (o governo catalão) do poder de convocar referendos (leia-se para independência).
Qual, afinal, seria melhor para o acordo Mercosul-União Europeia? Outro ponto sobre o qual vale refletir. Supondo que a direita se alie à extrema direita, um governo do PP com o Vox seria pior para as ambições de um tratado de livre comércio com o bloco sul-americano. O Vox é nacionalista, anti-UE e defende uma versão espanhola do trumpismo, algo como "Espanha para os espanhóis". Logo, tende a ser mais protecionista. Os socialistas são europeístas e tendem a negociar em bloco. Ainda assim, não é simples, porque precisam fazer concessões internas.
A Espanha detém a presidência rotativa da UE, e o governo Lula conta com Sánchez como aliado, ainda que, no caso das negociações com o Mercosul, o governo que mais tem entravado os avanços é o francês, afetado pelo poderoso lobby agrícola nacional.
Agora, voltemos aos números - e a quem realmente pode ganhar. PP conquistou 136 cadeiras no parlamento. Ao se aliar ao Vox (33), somaria 169 assentos. Também pode contar com mais uma cadeira da UPN, chegando a 169. Faltariam sete para ter a maioria.
Já o PSOE conquistou sozinho 122 vagas. Juntando-se ao Sumar (31), conseguiria 153. Com o apoio de 19 legendas pequenas, vai a 172 - teria, por tanto, mais do que a coalizão de direita, mas, ainda assim, faltariam quatro assentos para ter a maioria.
É essa a equação que Sánchez (PSOE) e o líder do PP, Alberto Feijó, têm em mente quando, cada um, reivindica a vitória. E é esse cálculo final que levarão ao rei Filipe VI, que tem o poder de ordenar que um ou outro forme o governo. Feijó dirá que seu partido conquistou mais votos no pleito - e é verdade. Sánchez afirmará que, somados os apoios, tem mais cadeiras - o que também é verdade. Então, quem ganhou? Os dois. E nenhum. Depende do ponto de vista. A única certeza é que a Espanha viverá dias duríssimos de negociações de bastidores pela frente. Uma nova eleição não está descartada.