É sempre perigoso - e, em geral, injusto - olhar o passado com as lentes do presente. Mas é necessário.
Sociedades só evoluem quando enxergam suas feridas, abrem as catacumbas de sua história e encaram seus esqueletos. Não à toa a Alemanha emergiu do horror nazista para se transformar em uma das nações mais desenvolvidas do planeta: olhando seus monstros nos olhos, sem jogar a sujeira para debaixo do tapete.
Nas últimas semanas, dois episódios, um aqui, no Rio Grande do Sul, e outro nacional nos deram a oportunidade de reavaliar o passado. Aparentemente desconectados entre si, as propostas aprovadas na Assembleia Legislativa que dificultam mudanças em símbolos do Estado e o comercial da Volkswagen que "ressuscitou" Elis Regina mexem com nossas memórias incômodas e nos obrigam a parar, por alguns instantes, para refletir.
A aprovação dos projetos dos deputados estaduais Rodrigo Lorenzoni (PL) e Luiz Marenco (PDT) são oportunistas porque se aproveitam da polarização política em um momento em que não há iniciativas em tramitação no parlamento gaúcho propondo mudanças no hino do RS. São como habeas-corpus preventivos diante de eventuais alterações.
O trecho que associa escravidão e falta de virtude é racista, como defende o movimento negro desde pelo menos os anos 1970. Nos Estados Unidos e na Europa, estátuas de líderes escravocratas ou ligados ao colonialismo foram derrubadas. A história não é estática. O mundo evolui. Nem as PEC (propostas de emenda constitucional) são eternas.
O outro episódio, da propaganda de Elis e Maria Rita, trouxe a público dilemas éticos da inteligência artificial, temas legais sobre direito de imagem de pessoas mortas e tocam na memória afetiva de todo mundo que, mesmo nunca tendo sido proprietário de uma Kombi, emociona-se ao lembrar de algum instante do passado, nem que seja empurrar o carro do pai em um verão distante.
O ponto de conexão entre a "PEC do hino" e o comercial são os fantasmas. "Como nossos pais" foi uma música composta, com as entranhas, por Belchior e interpretada com raiva por Elis contra a ditadura. Ouvi-la associada a uma marca ligada ao regime militar é como seguir cantando "povo que não tem virtude acaba por ser escravo" sem pensar na ferida aberta pelo racismo estrutural.
O produtor musical João Marcello Bôscoli, filho mais velho de Elis, parece ter feito o que poucos se atreveram na cacofonia das redes sociais: colocar o dedo na ferida.
- Se nós formos criar uma restrição a marcas que se envolverem em algum momento com algum tipo de governo ou algum tipo de ditadura ou coisa pior, a gente tem que pegar todas as empresas japonesas, todas as empresas alemãs, muitas empresas brasileiras, americanas e holandesas e estabelecer o mesmo tipo de crítica - disse à jornalista Monica Bergamo, da Folha de S. Paulo.
De fato, sobram poucas. Que ao menos a "PEC do hino" e o comercial da Volks nos façam pensar sobre nossos fantasmas.