Um dos precursores dos estudos sobre o etanol nos anos 1970 e um dos principais pesquisadores brasileiros sobre energia, o físico e ex-ministro da Educação José Goldemberg avalia que, passado um ano da Guerra da Ucrânia, o mundo encontra-se diante de uma espécie de "nacionalismo energético", onde cada governo utiliza os recursos como gás e petróleo como arsenal econômico a serviço de seus interesses geopolíticos.
Nesta entrevista, em que avalia os impactos do conflito no Leste Europeu, o estudioso prevê um retrocesso na transição energética no continente, pelo menos até 2030.
Aos 94 anos, o professor, nascido em Santo Ângelo (RS), assina o prefácio de “O Novo Mapa”, livro de Daniel Yergin, um dos maiores especialista sobre o tema no mundo, que a Editora Bookman (+A Educação) está lançando no Brasil.
Goldemberg foi reitor da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Sociedade Brasileira de Física de 1975 a 1979. No governo federal, foi secretário da Ciência e Tecnologia (1990 - 1991), ministro da Educação (1991 - 1992) e secretário do Meio Ambiente (março a julho de 1992), durante o governo de Fernando Collor de Mello. Em São Paulo, foi secretário do Meio Ambiente de 2002 a 2006. Atualmente, é professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade da USP. A seguir, trechos da entrevista à coluna.
No início da guerra na Ucrânia, muito se falava que essa seria uma oportunidade para a Europa acelerar o uso de energias renováveis para depender menos do gás proveniente da Rússia. Mas o que se viu foi países reativando o uso do carvão. Quando aperta a situação econômica, volta-se ao combustível poluidor?
A Europa não é como o Brasil, onde há muito sol. Falar de energias renováveis depende muito do clima, de onde você está. A insolação na Bahia ou no Rio Grande do Norte é quatro vezes maior do que na Alemanha, além do inverno que, lá, dura quatro, cinco meses, com céu encoberto. Painéis solares são problemáticos. Em compensação, na costa do Mar do Norte, há ventos muito bons. Ocorre que energia renovável não pode ser estocada. Esse é o problema: você precisa de energia o tempo todo. Não pode depender de energia apenas quando o sol está brilhando. É preciso reservatórios, e isso só com energias fósseis: carvão, petróleo, que você pode guardar, ou energia nuclear. Está havendo é um retrocesso do ponto de vista ambiental. Alguns ambientalistas europeus, para minha grande surpresa, estão começando a aceitar energia nuclear, algo impensável nos últimos 30 anos.
Dentro da lógica de "dos males, o menor"?
O mundo está passando por um surto de nacionalismo energético. Durante o período em que havia petróleo abundante, o que valia era o comércio internacional aberto. O Brasil é parte da engrenagem internacional, porque o petróleo brasileiro é muito pesado, e as refinarias no país não são adequadas para esse produto pesado. Então, o Brasil exporta petróleo pesado e importa derivados. É por isso que tivemos problemas com caminhoneiros (paralisações). É difícil entender: o Brasil produz 3 milhões de barris de petróleo por ano, mais ou menos o consumo brasileiro, só que caminhões e automóveis não usam petróleo, usam derivados. As refinarias brasileiras não foram adequadas para esse tipo de petróleo. Então, o Brasil importa, faz parte do mundo multinacional. É por isso que há esse problema: o preço do petróleo sobe, a Petrobras precisa subir (o preço do combustível). No fundo, o Brasil, que é autossuficiente na produção de petróleo, está na posição dos EUA. Lá, a gasolina ou sobe ou desce diariamente. Faz parte de uma cadeia mundial. Acho uma coisa perversa. As pessoas argumentam que investir em refinarias é caro e que o retorno demora. Mas é como o ditado chinês: "É uma caminhada longa, mas que, se você não começar, fica mais longa ainda".
Vai haver um retrocesso na Europa: o carvão está lá, as usinas termelétricas estão lá, estão prontas (para serem utilizadas)
A demanda por petróleo vai continuar crescendo até 2030 antes de começar a diminuir, segundo a previsão de Yergen. O senhor concorda?
Concordo, mas acho que os países europeus vão ter sérias dificuldades para cumprir esse roteiro. O que se vê na Ucrânia é isso. Os europeus estão voltando a usar o carvão. O ideal, na transição, e Yergen acho que concorda com isso, seria usar gás. Porque gás é melhor do que petróleo. Só que, com o gás houve o problema político: a guerra. Se não houvesse a guerra, provavelmente o acordo com a Rússia permitiria que se cumprisse esse cronograma. Acho que vai ser difícil. Vai haver um retrocesso: o carvão está lá, as usinas termelétricas estão lá, estão prontas (para serem utilizadas).
Nesse um ano de guerra, acreditava-se que a Rússia poderia ficar isolada ao não vender gás para a Europa. Mas acabou conseguindo vender o produto para China, Índia e alguns países do Oriente Médio.
Essas sanções que europeus e EUA aplicaram à Rússia não deram certo. Previa-se que o PIB russo cairia 8%, isso provocaria uma comoção interna tremenda. Caiu 2%. Não é uma situação boa: nacionalismo traz custos tremendos. Até acho que o Brasil está em uma boa situação. Talvez porque em energias renováveis estamos indo bem. E, como reserva, o Brasil tem hidrelétricas. O problema com renováveis é ter reservatório. Baterias da Tesla (fabricante de carros elétricos) estão muito longe de permitir armazenamentos por longos períodos. Os caminhões da Tesla armazenam carga por oito horas. Quando se trata de eletricidade na sua casa, sobretudo em locais onde chove muito e com céu encoberto, você precisa de reservatório de energia que dure um mês. E o Brasil os tem, por sorte. A contribuição de energia hidroelétrica caiu um pouco (na matriz energética), mas ainda é mais de 50% aqui no Brasil. Ainda assim, de vez em quando, háproblema, quando não chove o suficiente, mas o Brasil está bem. O que precisa ser equacionado é o problema das refinarias.
O senhor foi precursor dos estudos para o programa do etanol, mas, no mundo, essa iniciativa não é muito reconhecida. Como o senhor avalia a transição energética no Brasil?
Vejo com desânimo, porque outros países teriam condições de adotar um programa do etanol, como adotamos. A Índia é grande produtora de cana de açúcar. O Brasil produz açúcar e etanol. Grande número de países adotou como meta colocar 10% de etanol na gasolina. Não é muito. Poderia ser mais, mas acabou não pegando. Há países como Colômbia, que são bons produtores de açúcar, mas não produzem etanol. Há um conjunto de razões: claro que as empresas de petróleo sempre se opuseram. Se não houvesse o programa do etanol no Brasil, estaríamos consumindo o dobro de gasolina. Ele substitui metade da gasolina. Em outros países, substitui de 3% a 5%.
O Brasil poderia ter vendido melhor a ideia para o mundo?
Acho que houve falha grande do Itamaraty, que nunca fez grande esforço em comercializar esse produto. Todo ano há grandes exposições em Dubai. Sempre há produtores brasileiros. No caso de etanol, nunca os vi. Valeria a pena fazer um esforço, porque a produção de etanol no Brasil, é grande, é de 30 bilhões de litros por ano. Poderia dobrar. Seria preciso que o governo federal fizesse um programa de propaganda para inserção de etanol nesses países, a médio prazo, a partir de 2030. Yergen tem razão, as coisas vão acabar acontecendo só a partir de 2030.
O senhor acredita que as questões energéticas, independentemente do tipo de produto, continuarão sendo determinantes para conflitos entre nações?
Acho que sim. E vai se agravar, porque, quando a China retomar as taxas de crescimento, o país será um enorme absorvedor de energia. O que está ocorrendo com a Rússia é muito ruim para a Europa. A médio prazo, essa questão da Ucrânia vai ser resolvida. Os russos não vão mais querer vender gás para a Alemanha. Eles têm outros clientes. Estão construindo gasodutos entre Rússia e China. Esse problema não vai desaparecer. E não vai ser a energia nuclear que vai resolver isso. A quantidade de reatores nucleares que seria necessária é tão grande que não teria a menor possibilidade de resolver a crise entre 10 a 20 anos.