Estive três vezes próximo de Bento XVI: no conclave, quando foi anunciado sucessor de João Paulo II, em 2005, em sua visita a São Paulo, por ocasião da canonização de Frei Galvão, em 2007, de volta ao Vaticano, em 2013, quando renunciou ao papado.
Nos dias seguintes a sua assunção ao trono de São Pedro, mergulhei em sua história, visitando sua cidade natal, Marktl-am-Inn, na Alemanha, em busca de memórias e, claro, cobrindo a festa em torno do antigo morador ilustre.
Dizia-se que Joseph Ratzinger, seu nome de batismo, era o único cardeal que entrara naquela conclave como papa. E saíra como tal. Isso porque, em geral, os "príncipes da Igreja" favoritos nas bancas de apostas extramuros do Vaticano costumam não passar disso: apostas que não se confirmam quando sai a fumaça branca do alto da Capela Sistina.
Com Ratziner não foi assim. Grande teólogo, braço direito de João Paulo II, a quem sucedeu, exímio intelectual da doutrina, presidente da poderosa Congregação para a Doutrina da Fé, tinha os quesitos doutrinários para a ocupar o posto de representante de Deus na terra. Mas, aos 78 anos, não estava preparado para o peso do cargo - porque, no fundo, a cátedra de São Pedro é uma prisão.
Sob seu pontificado, a Igreja Católica viu pipocar casos de pedofilia mundo afora (EUA, Canadá, Bélgica, Irlanda e Alemanha, para ficarmos em alguns), novos e antigos, escândalos nas finanças do Vaticano que minavam a Santa Sé, enquanto Bento XVI, um papa reservado e sem carisma, se comparado com o antecessor, o pop João Paulo II, preocupava-se mais com a doutrina, reforçando o conservadorismo da Igreja em questões como aborto, divórcio e relacionamento com comunidade LGBTQIA+.
Em 11 de fevereiro de 2013, ele renunciou, surpreendendo o mundo católico - pela primeira vez, um Pontífice tomava essa atitude extrema desde Gregório XII, em 1415. Em sua última volta como papa pela Praça de São Pedro, a bordo do papamóvel, fiquei muito perto de Bento XVI. Escrevi em Zero Hora que vi em seus olhos o cansaço, o peso da cruz que carregava.
Com o conclave que elegeu Francisco, o mundo passou a conviver com dois papas e aprendeu a chamar Bento de "emérito", uma expressão que a própria Igreja precisou indicar para o tratamento dada a situação incomum.
Pouco se sabe sobre o nível de influência que ainda mantinha na Santa Sé. Nos últimos anos, recluso, pouco apareceu em público - uma das únicas vezes, foi para participar da cerimônia de canonização de João Paulo II.
A Igreja se move a passos lentos. Mas não é mais a mesma dos tempos de Bento XVI, um papa-tampão, segundo vaticanistas. Francisco deu um frescor necessário à instituição. Não revolucionou questões morais, mas a reaproximou, ainda que com limitações, dos fiéis, em especial os mais pobres. Também deu passos na condenação dos crimes de abusos sexuais cometidos por padres e se abriu (também com limitações) para a comunidade LGBTQIA+.
O próprio Francisco, inspirado em Bento XVI, admite que, se não tiver condições de seguir no comando da Igreja, repetirá o gesto do antecessor. Talvez esse seja um importante legado que o papa alemão deixa: a renúncia já não é um tabu dentro dos muros do Vaticano. Bento XVI, demasiado humano, libertou os papas de sua cruz.