Pai do que ficou conhecido como Plano Bresser, nos anos 1980, quando o Brasil vivia a hiperinflação, o economista e ex-ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser-Pereira avalia de forma positiva o acordo que o gabinete de transição de Luiz Inácio Lula da Silva está costurando para a aprovação da PEC da Transição. Também deixa claro seu entusiasmo com a escolha do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad para comandar o Ministério da Fazenda.
A seguir, os principais trechos da entrevista à coluna.
Mesmo com a redução do valor da PEC, o impacto será de mais de R$ 168 bilhões. Como o senhor avalia?
Era mais ou menos esperado. Política é a arte do compromisso. A equipe de transição fez o que era o necessário. Assim, pode fazer um acordo, e o valor foi menor. Quanto ao tempo, a mesma coisa: é evidente que o Congresso deveria dar apoio, mas, dentro de dois anos, a gente pode discutir de novo. O que também é razoável. Para o novo governo, é uma boa solução.
O senhor já disse que "histeria do mercado é tão inútil quanto o teto de gastos". Vale a pena um teto de gastos se é permanentemente furado?
Esse teto de gastos é um absurdo. Ao ser criado, era pura demagogia neoliberal. O golpe que levou Michel Temer à presidência teve apoio muito forte do mercado financeiro e das elites neoliberais que, naquele momento, tinham se radicalizado no Brasil, enquanto, nos Estados Unidos, o neoliberalismo estava em plena crise. E agora acabou. Com o governo Joe Biden, o Estado está de volta. E aquela coisa ridícula de que o Estado tem de ficar de fora de tudo não existe mais. O que Temer e Henrique Meirelles descobriram para mostrar que eram muito neoliberais e ortodoxos foi fazer esse teto de gastos, que é fixo. Não leva em consideração o aumento da população e do PIB. Só leva em consideração a inflação. Era insustentável.
Muito menos guerras e pandemias.
Era insustentável porque, a longo prazo, os gastos dos Estados tendem a aumentar pelo menos por uma razão: os gastos com saúde aumentam necessariamente. As pessoas vão envelhecendo, os tratamentos vão encarecendo, as duas coisas se somam. A pressão por aumento de gastos na saúde é grande e muito necessária. A solução que está aí é boa, mas o governo também precisa oferecer a chamada âncora fiscal, um teto de gastos. E há várias propostas, a mais interessante que conheço é uma proposta que foi objeto de dois artigos no Valor recentemente, um do meu amigo José Luiz Loureiro, e outro do Manoel Pires, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), do Rio, em que falam sobre o sistema adotado no Chile e na Colômbia e que estava sendo estudado no Peru. É um teto de gastos estrutural, que para países exportadores de commodities é importante porque leva em consideração as variações nos preços das mesmas. Eles (o futuro governo) têm agora tempo para fazer uma proposta que faça sentido.
Algum tipo de âncora fiscal o senhor defende, então?
Sem dúvida. Mas uma coisa razoável. O teto deve ser principalmente para as despesas correntes. Em relação a despesas de investimento, é o contrário: o Estado precisa estabelecer o mínimo. O Estado se compromete a digamos 5% do PIB, um valor muito modesto. Sou absolutamente contrário à estatização, mas sabemos que o desenvolvimento econômico depende também de investimentos públicos em setores da infraestrutura, nos quais você contar apenas com investimentos privados é um equívoco.
O senhor já citou que considera Fernando Haddad um bom nome como ministro da Fazenda. Por quê?
Haddad tem condições ótimas para fazer as duas coisas: conhece o que precisa ser feito e para fazer os acordos que são necessários.
Estou apostando nele. Mesmo antes da vitória de Lula, estava claro que seria indicado um político para o cargo, o que acho uma coisa muito boa. Mas um político que entenda de economia, que é o caso de Haddad, que inclusive tem mestrado na área. Conhece bem a teoria novo-desenvolvimentista, que venho desenvolvendo nesses últimos 20 anos. Ele tem condições muito boas, além disso é realmente um político e, como tal, faz compromissos. Os grandes políticos sempre fazem acordos. Eles devem ter um objetivo, que seja de defesa do interesse público, mas, ao mesmo tempo, sabem que, para conseguir maioria e governar, precisam fazer acordos. Haddad tem condições ótimas para fazer as duas coisas: conhece o que precisa ser feito e para fazer os acordos que são necessários.
E a divisão do ministério da Fazenda em três?
Acho que está correto. A volta do Ministério do Planejamento é mais do que razoável. Não há necessidade de se inventar um superministro da Economia, podemos ter um titular do Planejamento que cuida fundamentalmente do orçamento, não só do ano seguinte, mas do orçamento plurianual. Portanto, com um certo planejamento econômico. Ele deve cuidar também do planejamento dos investimentos públicos. A lógica é boa.
Mas desde o primeiro mandato de Lula, o mundo mudou: não há mais boom das commodities, a China cresce menos, pandemia, guerra na Europa. É possível comparar?
Tudo isso é verdade. Mas eu prefiro pensar em outros termos: a mudança principal foi em relação ao papel do Estado. Em 2003, estávamos no auge do neoliberalismo. Era a ideia de que o Estado devia se retirar de tudo. Lula foi muito pressionado por todo o sistema interno e internacional para entrar nesse esquema. Ele entrou mais ou menos, mas tinha o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, que entrou completamente. Agora, não. Internacionalmente, estamos em um mundo completamente diferente porque Biden é claramente um presidente desenvolvimentista. Os EUA voltaram a ser um país desenvolvimentista como foram praticamente em toda a sua vida, só não foram entre 1980 e 2020. E ficaram muito para trás. Isso cria um clima melhor para que o Estado, também no Brasil, assuma suas funções. Por isso, é também importante que o ministro da Fazenda seja um homem que compreende essa mudança no plano econômico e político. E Haddad compreende isso.
Embora o ministro Paulo Guedes siga teorias divergentes da sua, é um economista respeitado, tendo estudado na Escola de Chicago. Como chegou ao final do governo com esse apagão na máquina pública?
Foi assim: ele, mesmo falando em austeridade fiscal, permitiu que Bolsonaro gastasse bilhões em sua campanha eleitoral, algo ilegal. Inaceitável. Deixou dinheiro para fazer coisas mínimas da manutenção do Estado. Ele foi, juntamente com Bolsonaro, um irresponsável. "Ah, mas ele foi formado em Chicago." Isso não quer dizer nada. Até, para mim, é negativo. Se é formado em Chicago, acredita em um tipo de economia que eu não acredito.
Como decidiram rebater a carta de Armínio Fraga, Edmar Bacha e Pedro Malan em defesa de maior controle fiscal?
Foi uma coisa muito natural. Pensamos de forma semelhante: José Luiz Loureiro, Luiz Fernando de Paula e eu. Somos os três economistas novo-desenvolvimentistas. Somos desenvolvimentistas, mas bastante voltados para mercado e responsabilidade fiscal. Aquela carta (de Malan e outros economistas) era um absurdo. Dizia que, se o teto de gastos fosse abandonado, a inflação voltaria. Isso é contra toda a teoria econômica. Você deve ser responsável porque é fundamental que mantenha a ordem dentro de uma economia. E um país que gasta de maneira irresponsável vai mal. Portanto, precisa ter cuidado, é razoável que se preocupe com isso, mas não inventar teorias que não se justificam na prática. A própria teoria ortodoxa monetarista já abandonou a ideia de que são déficits públicos financiados por emissão de moeda que causam inflação. Isso pode ser em países muito ruins, que não têm dívida pública e controle de seus gastos. Não é caso do Brasil.
O senhor foi, por muito tempo, ligado ao PSDB. O que houve com o partido?
Acabou. Eu participei da fundação do PSDB, e toda nossa lógica era ter um país de centro-esquerda social-democrático. Havia um problema: não tínhamos apoios firmes na classe trabalhadora. Eu me lembro que, quando eu estava assinando a ata, aí em Brasília, eu dizia a mim mesmo: nós ganhamos, porque havia um grupo no qual meu grande chefe, Montoro, era defensor, que não queria saber que a palavra social-democracia estivesse no nome do partido. Nós ganhamos. Mas é bem possível que aconteça conosco o que ocorreu na Europa, em que os partidos ditos socialistas viraram social-democratas, caminharam um pouco para a direita e empurraram os países que se diziam social-democratas para a direita. Aconteceu em uma rapidez incrível. Não foi tanto o PT que empurrou. Mas FHC (Fernando Henrique Cardoso) que puxou. Ele se convenceu de que era melhor ser liberal quando assumiu a presidência e foi de centro-direita. O partido se esvaziou. De qualquer forma, é bom. Agora, temos um partido de centro-direita respeitável. Aí, eles elegeram João Doria. Desmoralizou tudo, de alto abaixo.
Quando o senhor fez o plano que ganhou seu nome, o Plano Bresser, o país vivia a alta inflação. Hoje, o mundo vive uma crise inflacionária de novo, obviamente não naqueles termos, mas ainda assim elevada. A solução hoje seria semelhante?
Não dá para comparar, porque, nessa inflação atual, existe um componente inercial, de indexação da economia. Um grande erro cometido no Plano Real foi que não se aproveitou para se excluir toda e qualquer indexação dos contratos legais. Indexação é ruim. Mas esse componente é pequeno, de forma que se pensar em usar novamente uma URV ou um congelamento com tablitas, que são as formas de neutralizar a inflação inercial, não cabe. Então, os economistas ficam sem outra alternativa senão elevar a taxa de juro e segurar a despesa pública. Isso, no curto prazo, para tentar que a demanda diminua. O que acelera a inflação é quase sempre excesso de demanda. Ou, como aconteceu aqui, existem problemas na oferta, como a covid-19, a guerra na Ucrânia, o desabastecimento de algumas linhas. Essas coisas criaram estrangulamentos na oferta que causaram essa inflação. E então ela fica inercial. Não é fácil diminuí-la. Mas não há soluções milagrosas para isso, infelizmente. O Plano Real tinha uma, mas não temos mais para esse tipo de inflação, que é bem menor.