Às 21h28min desta segunda-feira (12), após jantar em uma pizzaria da Asa Norte, em Brasília, entrei no carro e indiquei ao motorista do aplicativo o nome do hotel onde estou hospedado.
- Não vai dar pra chegar lá, senhor - me disse o homem.
- Manifestação? - tentei adivinhar.
- Sim.
- Mas meu hotel fica no Setor Hoteleiro Norte - expliquei, imaginando que os protestos pró-Jair Bolsonaro se concentravam no sentido oposto, na Asa Sul, onde está hospedado o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva.
- O senhor não está entendendo. Queimaram ônibus, está tudo fechado na região do seu hotel - insistiu ele.
A essa altura, era possível avistar pelo vidro frontal uma coluna de fumaça branca se erguendo na direção do Eixo Monumental, por detrás do Shopping Conjunto Nacional. O motorista dobrou à direita, na Via N2, mas não conseguiu cruzar a W3 porque havia uma barreira policial. Em meio à indecisão do motorista, se buscava um desvio ou se parava ali mesmo, analisei a situação. Ou descia ali ou não desceria pelas próximas horas, imaginei. Minha mãe, que está me visitando nesses dias em Brasília, estava ao meu lado. Em uma fração de segundos, calculei os riscos de cruzarmos a via diante da tropa de choque da polícia militar do Distrito Federal.
Descemos. Caminhamos a passos rápidos. Não havia manifestantes no campo de visão. Ao chegar ao outro lado da rua, começamos a ouvir explosões de bombas de efeito moral. O ar estava impregnado de fumaça. Ofegantes, com dificuldade para respirar devido ao cheiro de queimado que vinha dos ônibus incendiados, encontramos as portas do Brasília Shopping fechadas.
- Minha mãe é idosa, precisamos entrar - pedi.
Os seguranças abriram. Fomos um dos últimos a entrar no estabelecimento. Logo, gradis foram instalados nos acessos. Ninguém mais entraria ou sairia por pelo menos 40 minutos. Enquanto entrava ao vivo na Rádio Gaúcha lá de dentro, funcionários fechavam lojas, clientes se escondiam próximo às escadas rolantes, distantes dos vidros, e avistei uma correria vinda do corredor da W3.
Na sequência, cerca de cem adolescentes, na faixa dos 15 anos, que participavam de um evento no prédio, formaram uma fila. Sob orientação de um monitor, esticaram o braço em direção ao ombro do colega da frente. Pareciam aquelas cenas a que estamos acostumados a ver em tiroteios nos Estados Unidos, quando grupos de estudantes evacuam, de forma ordeira e apesar do horro, um colégio atacado.
- Estou presa no shopping. Ninguém pode sair - dizia uma jovem ao telefone.
Passado o pior momento, com a situação nos arredores do shopping mais calma, decidi sair do estabelecimento. Caminhamos por cerca de 500 metros até o hotel, em meio a fuligem, placas de trânsito arrancadas e latas de lixo pelo chão.
Minha mãe ficou em segurança no hotel e eu segui até o Eixo Monumental ao vivo na rádio. Ali, estavam duas carcaças dos ônibus queimados, um deles com metade do corpo ameaçando cair do viaduto. Três helicópteros sobrevoavam a área em rasante. A tropa de choque montava guarda, diminuindo o perímetro entre os manifestantes e outro grupamento militar.
A essa altura, o grupo maior de ativistas estava disperso. Alguns caminhavam a esmo pelas vias. Não eram mais do que três ou quatro em cada esquina. Gravei uma senhora, com a camisa preta e a inscrição "O poder emana do povo". Ela dizia que "Lula não subirá a rampa":
- Caso contrário vai ser muito sangue derramado. Tudo o que a gente não queria era isso aqui. Esse caos a gente não queria. Nada.
Ela ignorava que o "caos" havia sido provocado por eles próprios.
Famílias, com crianças de colo e carregando malas, caminhavam entre destroços e estilhaços de vidros.
- Saímos do hotel porque ameaçaram invadir o prédio - disse um homem que cruzou por mim arrastando a bagagem e com o filho pelo braço.
Do outro lado do Eixo Monumental, em torno do Hotel Brasil 21, onde Lula está hospedado, a situação era mais calma. Carros da polícia militar estacionados em oblíquo apontavam para a entrada do edifício, protegido pela tropa de choque. Houve rumores de que o presidente eleito poderia ser retirado de helicóptero, mas a situação não se confirmou.
Às 23h53min, a W3 seguia interrompida. O grupo de manifestantes havia se reduzido drasticamente. Brasília foi dormir com cheiro de fumaça nas narinas e com as luzes do giroflex dos carros policiais penetrando pelos vidros das janelas dos hotéis da área central, lembranças das três horas em que o coração da capital do país ficou sitiado por meia dúzia de vândalos.