O Brasil nunca tratou os assuntos de Defesa com a dignidade, a relevância e a importância com que o tema exige nas relações internacionais. O resultado explode agora, no momento mais sensível das relações cívico-militares desde a redemocratização.
Aos fatos: há 6 mil militares ocupando cargos civis na Esplanada dos Ministérios. Trata-se do governo mais militarizado da história brasileira pós-ditadura, entre 1964 e 1985.
O atual presidente, Jair Bolsonaro, ex-capitão do Exército, buscou entre os antigos pares, entre eles altos oficiais, nomes de confiança ao longo dos quatro anos de mandato, e ecoou o que, supostamente, seria a voz da caserna - a aversão à esquerda, ao comunismo, e à suposta ideia de que os partidos de oposição, em especial o PT, significavam a corrupção.
O aparelhamento das Forças Armadas foi rejeitado por muitos, ainda que em silêncio, nos quartéis. O Exército, arma que conheço melhor, deu exemplo de respeito ao Estado, à Constituição e à democracia. Uma amostra foi dada pelo então comandante do Exército, o general gaúcho Edson Pujol, que defendeu a distância entre as Forças Armadas e a política partidária. Era o auge da covid-19, e ele tratou a doença como "o maior desafio de sua geração". Evitava contato próximo, rejeitou aperto de mão, inclusive com Bolsonaro em evento público, o que significaria um desrespeito às orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Agora, no final de 2022, a um dia de os grupos de transição apresentarem os diagnósticos de suas áreas, nas quais trabalham há três semanas, a Defesa não tem nomes anunciados em Brasília. Isso é sintoma da delicadeza do tema. Mais: representa as feridas abertas nas relações civis-militares, que, com o fim do regime militar não estão cicatrizadas.
O Ministério da Defesa, criado em 1999, sugere, como em qualquer nação democrática do mundo, a subordinação das forças armadas ao comando civil. Nem isso no Brasil está ok.
O ponto de inflexão nesse diálogo, na avaliação de pesquisadores, foi o tuíte do comandante general Villas Boas a respeito do julgamento do hábeas-corpus de Lula no Supremo Tribunal Federal (STF), considerado o ponto de ruptura entre o poder militar e civil.
Hoje, o gabinete de transição enfrenta dificuldades de interlocução com a caserna. Nas últimas 24 horas surgiu a possibilidade de José Múcio Monteiro, ex-ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), como nome favorito. Isso exemplifica a carência de nomes. Ninguém quer assumir a bronca. São citados Celso Amorim (ex-chanceler e ex-ministro da Defesa), Nelson Jobim (ex-ministro da pasta, com bom trânsito entre as forças), Jaques Wagner, entre outros. Mas todos preferem os bastidores e, nesta segunda-feira (28), procurados, não responderam aos pedidos de entrevista.
O mais incrível, resultado do ruído entre a caserna absorvida por Bolsonaro nos últimos anos, é que, durante os dois mandatos de Lula no início do século 21, o Brasil viveu em paz com os quartéis. As Forças Armadas foram até valorizada, com operações de paz no Haiti e no Líbano, recebeu investimentos como poucas vezes tiveram nos tempos democráticos e se tornaram reconhecidas naquilo que sabem fazer como nenhum outro ator do país: o respeito ao patriotismo, às demais instituições e à soberania.