Lembro de ter pedido de Natal o livro "Versos Satânicos" -, de Salman Rushdie, no ano em que completei 18 anos. Eu sei, o título não combina muito com a data, mas, para um jovem jornalista em formação, me intrigava a razão de aquela obra ter rendido ao autor um decreto de morte. Rushdie foi esfaqueado nesta sexta-feira (12) durante uma palestra em Nova York, nos Estados Unidos.
Essa sentença de morte que pesava sobre o escritor indiano, era o assunto dos anos 1980, embora eu só tenha tomado conhecido do tema no início dos 1990, lá pelos meus 15 anos. Em 1989, o aiatolá Ruhollah Khomeini, líder extremista do Irã, que havia assumido o poder no país após a revolução de 1979, decretou uma "fatwa" contra Rushdie. "Fatwa", no mundo islâmico, é um pronunciamento emitido por um líder islâmico em especialista em legislação religiosa, em outras palavras um decreto religioso.
Na sentença, Khomeini pedia a todos os muçulmanos devotos que executassem o autor do livro, os editores e aqueles que conhecem seu conteúdo, de modo que ninguém insulte as santidades islâmicas. Além disso, ofereceu uma recompensa a quem o matasse: US$ 3 milhões.
Pelo seu decreto, prestem atenção, não só o autor e os editores estariam no alvo de extremistas. Mas todos os que conheciam seu conteúdo - ou seja, eu, um jovem de então 18 anos. Aquilo me apavorava. Será que eu, morando em Porto Alegre, poderia ser morto apenas por ler um livro?, me perguntava. Ao mesmo, tempo, aquele "perigo" me atraía para a leitura.
O que provocou a fúria no Islã, que levou o livro a ser banido em vários países de maioria muçulmana, foi o segundo capítulo. Mas antes, vamos ao tema da obra: "Versos Satânicos":
"Dois homens caem do céu para a terra, depois que terroristas explodem o avião em que viajavam. Ambos são indianos e atores. Ambos chegam incólumes ao solo da Inglaterra e se metamorfoseiam - um em diabo, outro em anjo. Muitas coisas opõem e associam os acidentados: um é apolíneo, o outro dionisíaco; um é apocalíptico, o outro integrado; um é apegado a sua origem, o outro está decidido a conquistar a nova nacionalidade", diz na síntese a editora Companhia das Letras, no resumo, da obra.
Trata-se é claro de um livro de ficção, que transita entre o real e o fantástico, entre o bem e o mal, entre a infinidade de opostos complementares e inconciliáveis da vida. Mais: um romance sobre o desenraizamento do imigrante - aliás, um tema ainda muito atual na Europa do século 21, como ficou claro durante sua participação, em Porto Alegre, do ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento, em 2014.
Mas é um romance, e assim deve ser lido.
Mas e o capítulo 2?
Nele, um dos personagens, que lembra Maomé, o fundador do Islã, prega a crença em outras divindades além de Alá, antes de reconhecer seu erro. Na fatwa, Khomeini acusou Rushdie de ridicularizar o Alcorão e Maomé - não muito diferente do que os terroristas que atacaram a Redação da revista Charlie Hebdo, em 7 de janeiro de 2015, matando 12 pessoas, entre jornalistas e caricaturistas, pensaram.
"Versos Satânicos" foi banido em mais de 20 países. Em janeiro de 1989, cópias foram queimadas na praça de Bradford, no Reino Unido. Houve ataques a centros culturais americanos. Rushdie viveu por 13 anos na clandestinidade, mudando de residência diversas vezes e vivendo sob proteção policial. Em março de 1989, o governo britânico rompeu relações diplomáticas com o Irã dos aiatolás.
Depois de quase uma década, o Irã, sob o comando do moderado Mohammad Khatami, se comprometeu publicamente a não agir contra o escritor, ainda que pressionado a seguir com a fatwa pela ala radical. E, mais importante, o país também informou que não incentivaria mais o cumprimento do decreto religioso que o condenava à morte.
Em 2019, nos 30 anos do decreto, em visita à França, Rushdie explicou:
- Passaram-se 30 anos. Agora tudo vai bem. Tinha 41 anos, agora 71. Vivemos em um mundo onde os assuntos que preocupam mudam muito rapidamente. Agora existem razões para ter medo, outras pessoas para matar.
Sou um pouco conservador ao tratar temas religiosos. O trabalho jornalístico que fiz no Oriente Médio em diversas ocasiões - cobrindo guerras entre Israel e países árabes e os atentados em Paris, em 2015 (o do Bataclan e arredores, 10 meses depois da Charlie Hebdo) - me ensinou a não brincar, ironizar ou comparar credos. Respeito. Ponto.
Mas não o extremismo, de qualquer fé que seja.
Rushdie, esfaqueado nesta sexta-feira (12), conseguiu com seu livro lançar luzes, 13 anos antes dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2021 em Nova York e Washington, sobre o uso político da religião - que pode ser católico, evangélico, muçulmano ou judeu, entre outras fés. Enquanto torço por sua recuperação, fico com suas palavras:
- De todas as ironias, a mais triste é ter trabalhado por cinco anos para dar voz à cultura da imigração e ver como meu livro é queimado, na maioria das vezes sem ter sido lido, pelas mesmas pessoas das quais ele fala.