A partida do navio Razoni do porto de Odessa, na Ucrânia, nesta segunda-feira (1º), é uma daqueles notícias que devem não apenas ser celebradas como também conformar um lembrete de como crises internacionais afetam o nosso dia a dia.
A guerra pode redesenhar o mapa da Ucrânia, alterar a balança de poder na Europa e afetar a indústria em razão da dependência do gás russo, temas aparentemente distantes do nosso dia a dia e que dizem respeito à geopolítica. Mas o conflito, que entrou em seu sexto mês, atinge também nossas vidas comezinhas: efeitos colaterais da crise são, por exemplo, a elevação dos preços dos combustíveis e o aprofundamento da fome no mundo.
Ao menos, em relação à crise alimentar que se agigantava no horizonte, há o alento de vermos o navio Razoni levantar âncora na costa da Ucrânia, com destino ao Bósforo e, depois, ao Líbano, transportando 26 mil toneladas de milho. A saída da embarcação, a primeira desde o início do conflito, ocorre graças ao acordo assinado entre Ucrânia, Rússia, Turquia e Nações Unidas, no último dia 22.
Antes da guerra, a Ucrânia era a quarta maior exportadora de milho e a quinta de trigo do mundo. Boa parte dessa produção era destinada a países africanos e do Oriente Médio. Cerca de 90% é exportada pelo Mar Negro, que estava bloqueado pela frota russa. A escolta de navios turcos, por exemplo, é uma garantia de que o corredor por onde as embarcações passarão não está crivado de minas.
Com o bloqueio da produção, os preços desses produtos agrícolas deram um salto de 45%. A crise levou inclusive o Programa Mundial de Alimentos, da ONU, a suspender a ajuda a países como o Iêmen e Sudão do Sul, imersos em seus próprios conflitos civis e em crise humanitária.
O governo da Ucrânia qualificou o desbloqueio como "um alívio para o mundo" - acredita-se que mais de 20 milhões de toneladas de grãos destinados à exportação estejam retidos no país e que, aos poucos, poderão ser escoados.
A responsabilidade pela tragédia alimentar que se desenhava entra no conflito de narrativas: a Ucrânia dizia que a Rússia não permitia a saída dos navios e atacava seus silos e armazéns - o que é verdade. A Rússia afirmava que a tragédia iminente da fome é culpa das sanções internacionais, que proíbem nações pobres de África e Ásia de comprar seus produtos - o que também é verdade, ainda que nem todas as empresas russas estejam sancionadas. A Rússia também é importante exportadora de fertilizantes, inclusive para o Brasil.
Ironia é que a liberação dos portos ucranianos, o que deve fornecer US$ 1 bilhão em receita cambial para a economia ucraniana e uma oportunidade para o setor agrícola planejar a temporada de semeadura do próximo ano, apesar do conflito, tenha ocorrido um dia depois da morte, em um bombardeio russo, de um dos homens mais importantes do setor: Oleksiy Vadotursky, proprietário da empresa Nibulon, de produção e exportação de grãos.
A saída do navio é a melhor notícia na Ucrânia desde o início da guerra, em 24 de fevereiro. Não significa que os dois países estejam perto de um cessar-fogo. Mas já estiveram mais distantes.