Há panelaços nas janelas de Xangai. Raros, é verdade. Mas, outrora, impensáveis. Também há vídeos vazados nas redes sociais em que policiais aparecem cercando com tela condomínios residenciais, onde casos de covid-19 foram identificados. Quando a polícia política do regime retira do ar as imagens ou censura os post, rapidamente algum internauta insatisfeito muda a palavra "China" do texto para "EUA" e as críticas voltam ao ciberespaço.
Assim como nós, os normalmente disciplinados chineses também estão cansados da pandemia. Mas a rotina de confinamentos, de testes em massa e outras restrições se avolumam em efeito cascata: primeiro Xangai, a capital econômica e maior cidade da China, depois Pequim e, agora, Guangzhou. Quando em 19 de março de 2022 a China voltou a registrar mortes por covid-19, o país havia passado mais de um ano sem um óbito sequer - desde 25 de janeiro de 2021. Em todo o ano passado, haviam sido apenas duas mortes. Na atual onda, o número de óbitos diários chegou na quinta-feira a 51 (todos em Xangai). Desde o início da pandemia, foram 4,8 mil vítimas fatais no país, segundo Our World in Data, da Universidade de Oxford.
O coronavírus nasceu na China no final de 2019, espalhou-se pelo Ocidente, mas, enquanto do lado de cá do mundo, nos últimos dois anos e meio vivemos o pandemônio até a descoberta da vacina, o gigante asiático conseguiu, com sua política de "covid zero", conter a doença. A variante Ômicron fez o caminho contrário. Nasceu provavelmente na África, tomou o lado de cá do mundo e perfurou a Muralha da China, tornando esses dias os piores no país desde o início da pandemia.
Em Xangai, com 26 milhões de habitantes em lockdown desde 28 de março, as mortes são diárias - e o fechamento já afeta a economia. Guangzhou cancelou centenas de voos e obrigou a testagem de um terço da população de 19 milhões de habitantes. Os moradores ficaram sem acesso à comida diante, com fechamento de supermercados e farmácias, e dezenas de milhares de pessoas colocadas em centros de quarentena. A capital, Pequim, isolou bairros, suspendeu aulas (30% dos novos casos foram registrados entre estudantes), funerais e casamentos.
É ponto basilar da política de covid zero confinar bairros inteiros, quando um caso é detectado, antes de decretar lockdown em toda a cidade. Assim, os chineses conseguiram domar o vírus nesses dois últimos anos. Mas, nessa estratégia, há medidas polêmicas, como a separação de pais e bebês infectados (revogada recentemente) e o uso de condomínios residenciais como centros para quarentenas. Há desorganização de autoridades municipais e pouca vacinação de idosos. As taxas de imunização atrasada - em Xangai, por exemplo, apenas 62% da população com mais de 60 anos estão vacinadas, com 38% com doses de reforço - são uma falha fatal de planejamento no país que concentrou recursos massivos no desenvolvimento, fabricação e exportação de imunizantes.
Falar agora em fechar os bairros, enquanto o mundo se abre e retoma o turismo global - os chineses amam viajar - é demais até para a paciência oriental. Neste feriado de 1º de maio, que na China dura cinco dias, o Ministério do Turismo prevê um queda de mais de 60% nas viagens na comparação com o mesmo período no ano passado.
Foi aí que começaram os protestos, ainda tímidos, individuais e de uma população que, no fundo, sente medo. Nada que, por enquanto, faça cócegas na ditadura, que, aliás, não deve mudar a estratégia de covid zero até o final de 2022. Principalmente porque no segundo semestre o regime realiza o 20º Congresso Nacional do Partido Comunista, quando Xi Jinping, o mais poderoso timoneiro desde Deng Xiaoping, deve ser "reeleito" para o terceiro mandato. Em 2018, o PC aboliu o limite de dois mandatos e abriu a porta para um governo por tempo indeterminado, ainda que faltem detalhes para regulamentar internamente esse processo. Xi não deseja que som dos panelaços cresça até lá. Mas, por enquanto, a versão chinesa de "em time que está ganhando não se mexe" deve continuar. Mesmo com riscos políticos.