A uma leitura apressada, a eleição de Gabriel Boric no domingo (19) no Chile engendra a ideia de uma nova onda vermelha na América Latina.
É cedo, no entanto, para uma conclusão desse tipo. Há um atual equilíbrio de forças na região, com importantes países governados pela direita: Paraguai (Mario Abdo Benítez), Uruguai (Luis Lacalle Pou), Colômbia (Iván Duque), Equador (Guillermo Lasso) e Brasil (Jair Bolsonaro), que, por vezes flerta com a extrema-direita húngara e polonesa. Duas eleições em 2022, na Colômbia e no Brasil, serão o fiel da balança.
A esquerda que ensaia maior protagonismo, após anos de governos de direita no subcontinente, não é um bloco monolítico, como o alinhamento de governos do final dos anos 1990 e início dos 2000, quando Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), o casal Kirchner (Argentina), José "Pepe" Mujica (Uruguai), Ricardo Lagos e Michele Bachelet (Chile), Fernando Lugo (Paraguai), Evo Morales (Bolívia), Hugo Chávez (Venezuela) e Rafael Correa (Equador) formavam um bloco mais coeso - senão na gestão da economia, ao menos do ponto de vista ideológico. As edições do Fórum Social Mundial em Porto Alegre e em Caracas serviram de vitrine dessa unidade.
Hoje, não se pode colocar no mesmo balaio Boric e Pedro Castillo, por exemplo. Embora ambos sejam novos rostos da esquerda latino-americana, o chileno tem uma agenda progressista em temas comportamentais, como a defesa da legalização do aborto e da união entre pessoas do mesmo sexo. O presidente peruano defende posições conservadoras em temas ligados aos direitos reprodutivos de mulheres e às causas LGBTQ+. Também não se pode comparar Alberto Fernández, da Argentina, a Nicolás Maduro, da Venezuela, ou a Daniel Ortega, na Nicarágua. Aliás, no grande arco do peronismo argentino cabe todos lados do espectro político - do caudilho Juan Domingo Perón a Néstor e Cristina Kirchner, passando pelo direitista Carlos Menem.
Essa esquerda moderna, do qual o Chile parece ser farol, no entanto, aprendeu que, para governar em democracias é necessário, por vezes, concessões e concertações - o que a empurra para o centro, mais próxima da social-democracia europeia. Também é necessário não tergiversar sobre violações de direitos humanos e sobre liberdade de expressão e de imprensa que ocorrem na Venezuela e em Cuba - algo sobre o qual a maioria dos líderes latino-americanos prefere silenciar.
O discurso até pode ser parecido, por vezes: combate à desigualdade, maior acesso a serviços públicos de qualidade, como saúde, educação, e presença do Estado, mas, se por um lado Maduro, Ortega e Miguel Diáz-Canel (Cuba) representam uma esquerda autocrática, apegada ao poder - e ao passado -, Boric revela uma nova linguagem e postura - que tanto podem servir como lição à velha esquerda quanto à velha direita latino-americanas.