São vários os motivos que levam a crer que é injusto culpar a África - e em especial a África Meridional (ou sul da África) - pelo surgimento da variante Ômicron.
Primeiro porque variantes podem surgir em qualquer lugar do mundo onde a vacinação não alcança percentuais satisfatórios, como Estados Unidos e Áustria, por exemplo, ou onde a pandemia está descontrolada, como já foi o caso de Índia e Brasil.
Segundo porque a variante Ômicron foi descoberta por cientistas da África do Sul, justamente porque esse país tem se dedicado ao sequenciamento de novas cepas - grosso modo, é como se os cientistas brasileiros tivessem descoberto uma nova variante aqui justamente pelo trabalho criterioso de suas equipes. Aliás, é muito provável que Ômicron não tenha surgido na África do Sul, mas em Botsuana, onde apenas 20% da população recebeu as duas doses de vacina (ou dose única da Janssen).
Na geopolítica da vacina, está claro que os países ricos, como previsível, se anteciparam aos demais na vacina - a União Europeia vacinou 67% da população, média acima da mundial (42%). A África do Sul, país mais rico do continente, por exemplo, imunizou 24%. A média de toda a África, no entanto, é bem inferior, 7%.
O terceiro motivo é que, sim, a África do Sul soou o alerta, mas, no mesmo dia ou 24 horas depois, a variante já havia sido detectada em mais de 10 países do outrora chamado Primeiro Mundo - Austrália, Áustria, Bélgica, Reino Unido, Canadá, República Tcheca, Dinamarca, Alemanha, Israel, Itália, Holanda, Portugal e Hong Kong são alguns.
Não vi, até agora, governos mundo afora impondo restrições de voos a esses países - ao que parece, apenas os africanos foram penalizados.
O impacto do isolamento sul-africano é brutal. O presidente Cyril Ramaphosa apelou por uma campanha internacional por solidariedade. A suspensão de voos para o país tem resultados imediatos na economia. A África do Sul é um hub de voos internacionais e 7% do Produto Interno Bruto (PIB) depende do turismo. A agência de notícias Bloomberg classificou o impacto da covid-19 no país como "a mais profunda contração da economia nos últimos 30 anos". Cerca de 34% da população está sem emprego.
A maioria das doações de vacinas à África tem sido feita com pouca antecedência e com vida útil curta, segundo um conjunto de importantes de organizações de saúde pública do continente, o que torna extremamente difícil para os governos planejar campanhas de vacinação e aumentar a capacidade de absorção. Até agora, mais de 90 milhões de doses doadas foram entregues ao continente por meio da Covax (da Organização Mundial da Saúde) e do Avat ( African Vaccine Acquisition Trust). Os países precisam de abastecimento previsível e confiável para planejar em curto prazo a distribuição.
Pfizer e Johnson & Johnson fizeram doações para a África, mas esses produtos (as vacinas de última geração), como se sabe, exigem melhores condições de armazenamento, algo de que nações pobres não dispõem. Isso dificulta estoque, entrega e aplicação.
Nesse momento, não basta só doar. China e Estados Unidos, que têm se dedicado a doar vacinas (cada um com seus interesses próprios de projeção de influência) precisam pensar nisso.
Até agora, falhamos como humanidade no grande teste da cooperação internacional alardeada no pós-II Guerra Mundial.