No 12º dia da minha luta particular contra a covid-19, recebi a mensagem de uma amiga jornalista: "Eu já te vi em tantas missões impossíveis! Essa vai ser mais uma que tu vais tirar de letra".
Deitado, tentando sentir como reagia cada órgão do meu corpo naquela manhã, voltei mentalmente a tantos momentos em que quase joguei a toalha durante coberturas jornalísticas no Exterior: na solidão do quarto de hotel nas guerras do Líbano, da Líbia e do Iraque; retido em um quartel da ditadura de Nicolás Maduro; ou, no deserto antártico, com uma lancinante dor de dente.
Memórias são importantes. Eu sabia disso porque, nesses mais de 365 dias em que todos nós estamos apartados de nossos amigos e familiares por causa da pandemia, as lembranças haviam sido fundamentais para manter a mente sã. Mas agora, que era um dos caídos da covid-19, o filme da vida, que aquela amiga ajudara a trazer de volta, era como um combustível a reforçar quem sou.
A luta contra a covid-19 é solitária. Aqueles que nos amam, obviamente, querem ajudar, estar ali contigo. Minha mãe, até agora, ainda não me perdoou pelos nãos que eu disse às tentativas de ela pegar o carro para me trazer feijão cozido, um dos meus pratos preferidos. Um amigo, que soube tardiamente da minha situação, me disse: "Bah, agora fiquei preocupado. Se precisar de alguma coisa, ir no mercado para ti, me chama".
A covid-19 impõe a solidão. Preferi a discrição. Comentei apenas com aqueles que sentiram falta das colunas ou perceberam meu silêncio nos grupos de What's. Primeiro porque bate um certo constrangimento. Durante 365 dias, tomei todos os cuidados para evitar a infecção: teletrabalho, álcool em gel dentro do carro, na porta de casa, máscaras. E ali estava eu, positivando justamente no 11 de março, um ano exato desde que a Organização Mundial da Saúde (OMS) havia declarado pandemia.
Depois de um tempo, a gente aceita que o coronavírus está aí circulando com máxima agressividade, é a oportunidade que lhe torna vítima. Os cuidados ajudam muito. Mas às vezes não bastam.
Dá uma sensação de fracasso. Não tive Páscoa no ano passado, festejei meu aniversário apenas com minha namorada e com minha mãe, rejeitei inúmeros convites de amigos, colegas e outros familiares para uma saidinha, um chope aparentemente inocente. E, agora, estou aqui, sozinho, com a praga.
Para mim, houve um grande desafio nesses dias: o que passei a chamar de "manter o amor do lado de fora". Foi uma estratégia dura que me impus para evitar atos de carinho de quem nos ama que pudessem resultar em contato e, pior dos mundos, a contaminação, por mim, de um familiar ou amigo.
Em minha família, todos compreenderam, mas ninguém de fato aceitou as minhas rejeições: "Não venham aqui, não pensem em me trazer um suco de laranja, não vou descer para pegar uma sacolinha de "coisas boas", como chamamos, intimamente, pequenos agrados que nos fazemos uns aos outros.
- Já dá para te ver? - rogou minha mãe, no 13º dia.
- Só depois do 15º dia - afirmei, mesmo sabendo que eu esperarei o 16º, o 17º, o 18º por garantia.
O coronavírus testa todos os nossos sistemas. Começou com febre e tremor noturno, o dia 1. Nas 24 horas seguintes, nada. Foi só um mal-estar, você pensa. Na noite seguinte, vem o suadouro. E febre de novo. Deixei de trabalhar um dia, mas nos outros me sentia quase normal. "Era uma virose", pensei. No quinto, veio a dor no corpo. Fiz o teste RT-PCR já com quase certeza de ter entrado para a estatística da pandemia.
Mas é só quando sai o resultado é que se cai na real: tudo aquilo sobre o qual escrevi nesse um ano, de Wuhan a Milão, da tragédia americana ao caos brasileiro, estava dentro de casa. Sento e testo a mim mesmo: respiro fundo, como se tentasse auscultar meus pulmões, movimento as articulações, flexiono músculos. O Sars-CoV-2 põe tudo a prova: depois da confirmação, tive dor de cabeça e diarreia, no sexto dia. No sétimo, nada... E assim, você acha que está bom, passou. Mas a dra. Deisy Borges, meu anjo da guarda nesses dias, havia me deixado com uma pulga atrás da orelha:
- No sétimo dia, algumas pessoas sentem alguma piora.
Sete, o meio do caminho dos 14 dias do ciclo viral, preciso vencer. Me impus como meta. Talvez fosse aquele momento a que o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que foi parar na UTI por causa da covid-19, se referira quando agradecera aos dois enfermeiros que estiveram ao seu lado durante 48 horas, "quando as coisas poderiam ter ido para um outro caminho". E se, no meu caso, as coisas forem para outro caminho? Para onde eu vou?
No pior momento da pandemia, não há emergência, não há hospital, não há leitos de UTI. O último recurso, aquele que todos nós pensamos para o qual iremos se tudo piorar, não é uma opção. Não existe!
No 12º dia, tive vontade de ler um livro e consegui - antes, ficara apenas com a vontade, porque a concentração não existia. Mas a covid-19 é traiçoeira: depois que você pensa que o pior passou, parece que é aí que a doença se instaura a pleno: vem a falta de ar, o cansaço ao fazer coisas simples como tomar banho. Com asma e bronquite, a cada crise de falta de ar, eu ficava nervoso. E se eu precisar de um respirador? Suava, a pressão arterial subia. Deitar, respirar devagar, bastava para normalizar a situação.
Nesses 14 dias, segui orientações apenas dos médicos. Tratamos os sintomas: analgésico para dor no corpo, antitérmico para febre, xarope se houvesse tosse. Mais nada. Quando sentia que meu corpo apresentava cansaço, deitava. Brinquei com meu chefe que o exército de anticorpos que trouxera do Haiti precisava trabalhar - com uma dose de bom humor e uma ponta de esperança de que minhas três visitas à ilha caribenha servissem, de alguma forma, para que absorvesse ao menos em parte a fortaleza do heroico povo haitiano que enfrenta pobreza, terremoto, epidemia, furacão e segue de pé.
No 14º dia, fim de ciclo. Estou também eu de pé. Levantei, caminhei, aspirei o ar. E ele veio. Não me senti cansado. Ao final da manhã, ouvi uma música no rádio: "Erga essa cabeça, bota o pé e vai na fé, manda essa tristeza embora…", samba do Grupo Revelação. Chorei. Eu havia vencido. Mas, com esse sentimento, imediatamente, vinha também a culpa por comemorar.
O que vivi nesses dias foi muito pouco perto do que milhares de outras pessoas estão enfrentando. Decidi compartilhar essa experiência apenas para fazer um apelo: tentem não pegar o vírus. Porque, se pegar, é roleta-russa: as coisas podem ficar bem, como ficaram na maior parte do tempo, no meu caso, mas também podem ir para outro caminho.