Dois fatores presentes na quartelada em Mianmar se repetem nos golpes de Estado contemporâneos. O primeiro: líderes que se aproveitam das frestas da Constituição para justificar o ataque às instituições - e para tentar passar a ideia em nível doméstico e internacional de que agem dentro da lei. O segundo: excesso de influência das forças armadas na política, atuando como sombra ao poder civil em democracias (ou pseudodemocracias, como no caso de Mianmar) juvenis.
No primeiro caso, os militares que tomaram o poder no domingo (31), colocando na cadeia autoridades como a Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, dizem estar agindo conforme a Constituição. De fato, em seus artigos 417 e 418, a Carta Magna do país permite ao presidente declarar estado de emergência por um ano, após consulta ao Conselho Nacional de Defesa e Segurança, caso a unidade, a solidariedade ou a soberania nacionais estejam ameaçadas. Como ameaça, os militares citam o fato de a Comissão Eleitoral não ter investigado as suspeitas de fraude na eleição de 8 de novembro de 2020, vencidas pelo partido Liga Nacional para a Democracia (NLD), de Aung. Faltou dizer que a Constituição foi feita pelos próprios militares, em 2008, o que nos leva ao segundo caso: a influência das forças armadas na política.
Em países com forte histórico autoritário, os quartéis subordinados ao poder civil, como deve ser em qualquer democracia, é algo que os militares não costumam aceitar muito bem. Em Mianmar, antiga Birmânia, a Carta Magna permite às forças armadas manter um forte controle da política, mesmo quando não está no poder. Os militares controlam três ministérios (Exército, Segurança Interna e Fronteiras) e 25% dos cadeiras do parlamento. Também estão presentes por meio de conglomerados na economia do país. No caso atual, esse "poder compartilhado" - ou híbrido - dentro do governo mantém a instabilidade em um país que durante 46 anos viveu sob uma ditadura.
Em 2015, os militares e seu Partido da União, Solidariedade e Desenvolvimento (USDP) tiveram de engolir a derrota para Aung. Mas há erros civis também: no ano passado, nas novas eleições, Aung não era elegível para o posto de presidente, segundo a Constituição. Mas um cargo que foi inventado para ela, o de conselheira de Estado.
Nas mãos dos militares, entretanto, além da crise institucional, há o risco de aprofundar-se a tragédia humanitária invisível aos olhos do mundo. Mais de 622 mil pessoas da etnia rohingyas fugiram do país em direção a Bangladesh nos últimos quatro meses, segundo a organização Médicos Sem Fronteiras. As autoridades de Mianmar consideram o grupo étnico a encarnação de todos os males do país. Solução? Defenestrá-los. A perseguição a essa povo levou Mianmar a ser acusada de "genocídio" na Corte Internacional de Justiça (CIJ), o principal tribunal da ONU.
A crise testa os dois gigantes do tabuleiro global. Mianmar está localizada na órbita de influência de uma China que, cada vez mais, quer expandir poder na Ásia. Tudo indica que, em uma votação do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o poderoso vizinho irá protegê-lo de sanções internacionais. Foi o que fez tempos atrás ao criar obstáculos para maior pressão no caso dos rohingyas _ dizendo que o problema é um assunto interno de Mianmar.
Na terceira semana do novo governo nos Estados Unidos, Joe Biden enfrenta seu segundo desafio internacional com relação a interesses chineses _ o primeiro foi quando seus porta-aviões foram recebidos com pouca gentileza no Mar do Sul da China. Na declaração desta sexta-feira (5), Biden pediu aos militares que renunciem ao poder.
"Democracia disciplinada" é como os militares de Mianmar chamam o sistema político de seu país. Mas alguém já disse que quando são necessários qualificativos para explicar o termo democracia, ele pode significar tudo, menos o que realmente é.