Quando estoura uma crise internacional, jornalistas estão habituados a se deslocar até o epicentro, onde os fatos ocorrem. Em efeito contrário, a pandemia da covid-19 trouxe um grande episódio global até nós, confinando jornalistas dentro de suas casas.
De sua residência no centro de uma das metrópoles mais impactadas pela covid-19, Nova York, o correspondente da Globonews Guga Chacra elaborou essa experiência e a transformou em livro pulsante, que mistura análise da geopolítica em tempos de pandemia e vivências pessoais.
De seu posto privilegiado de observação, em uma Manhattan que precisou parar por causa do coronavírus, o jornalista de 44 anos equilibra uma visão particular sobre a pandemia, com impactos em seu dia a dia, como o afastamento da Redação e o convívio em família (ele é casado e tem dois filhos, uma menina de quatro anos e um garoto de dois), e uma análise crítica da crise no sistema internacional. A obra "Confinado no front - Notas sobre a nova geopolítica mundial" é editada pela Todavia. Por telefone, Guga conversou com a coluna sobre o trabalho.
Como foi estar confinado no front, ou seja em casa em uma das cidades mais atingidas pelo coronavírus, epicentro das notícias? Quais diferenças em relação a outras coberturas?
Quando fiz grandes coberturas, nós, como jornalistas, íamos para o local dos acontecimentos, tomando as precauções necessárias para mostrar o que estava acontecendo lá para a nossa audiência no Brasil, que estava segura em suas casas. Sabíamos que, a qualquer momento, a gente poderia ir embora. Como durante o terremoto no Haiti, a gente saiu de Porto Príncipe, passou por aquele lago, cruzamos a fronteira para a República Dominicana, e, em questão de uma hora, estávamos seguros (Guga e eu deixamos o país juntos, após a cobertura da tragédia de 2010). A mesma coisa em Damasco (Síria). Para chegar ao Líbano, você pega uma estrada de pista dupla e, em 40 minutos, está na fronteira. De Gaza para Israel nem se fala, você cruza a fronteira de volta rapidamente. No caso da pandemia, foi diferente, porque todo mundo estava ou está em um lugar onde há risco. Há risco em todos os lugares. Não podíamos fazer mais do que qualquer outra pessoa: primeiro pelo risco de nos infectarmos e segundo pelo risco de infectar outras pessoas. Por isso, uma série de órgãos de imprensa estabeleceu como regra que não se podia fazer cobertura em hospitais. Não se tinha para onde fugir. Nenhum lugar estava seguro. Além disso, todas as pessoas que a gente conhece corria risco, e toda a nossa audiência vivia a mesma coisa que a gente vivia.
Essas limitações prejudicaram o trabalho jornalístico na sua opinião?
O jornalismo tentou buscar fontes de informação: a ciência, os médicos, e isso foi muito importante, entrevistando epidemiologistas, infectologistas, pessoas que dominam o assunto. Aí entrou o nosso papel de jornalistas, de fazer perguntas para eles, e, em segundo lugar de fazer análise, de buscar informações sobre as medidas que as autoridades estavam tomando, o que era correto e o que não era. Mas foi uma cobertura bem diferente das outras. Até para o meu caso, como comentarista, é muito mais difícil comentar medicina. Por isso, a importância de fazer perguntas. E comentar a parte política da pandemia.
Foi uma performance muito ruim do Trump. Não fosse a pandemia, ele muito provavelmente teria chance maior de ser reeleito. O que acabou com a chance dele foi esse comportamento negacionista.
Sobre política, o quanto a pandemia impactou na derrota de Donald Trump na eleição?
Houve a crise econômica, mas essa ocorreu no mundo inteiro. Ninguém culpa Trump pela crise econômica que os EUA entraram. Todo mundo sabe que ela foi causada pela pandemia. Ele não leva essa culpa. A culpa que ele leva de grande parte do eleitorado que votou em Joe Biden se deve ao comportamento que ele teve durante a pandemia, pelo negacionismo dele, pela postura e pela situação terrível em que ficaram os Estados Unidos, chegando a quase 300 mil mortos. Não tem como dizer que foi uma performance boa. Foi uma performance muito ruim do Trump. Não fosse a pandemia, ele muito provavelmente teria chance maior de ser reeleito. O que acabou com a chance dele foi esse comportamento negacionista durante a pandemia. Embora uma parcela gigante da população americana até concorde com ele, essa não foi suficiente para fazê-lo ganhar.
Como Nova York, uma cidade ainda com os traumas de 11 de setembro de 2001, viveu o drama? Parou mesmo?
Parou, tem um capítulo em que falo sobre isso no livro. Foi assustador o que aconteceu aqui. Não aconteceu algo similar no Brasil. Aqui, bateu quase mil mortos por dia em meados de abril. Isso não aconteceu em nenhuma cidade brasileira. Foi um choque ver o hospital de campanha no Central Park, o navio-hospital, que ficou atracado em Midtown, os corpos sendo colocados nos caminhões frigoríficos. Mas o que assustou mesmo no dia a dia era o barulho de ambulância o tempo todo. Não foi lockdown total, como na Europa. Você não era obrigado a ficar dentro de casa, você podia andar pela rua. Mas a maioria das pessoas não andava, a não ser para caminhar com o cachorro, ir ao supermercado. A cidade fechou tudo: as lojas, os restaurantes. E as pessoas evitavam sair de casa, embora não fosse obrigatório.
Você acredita que, passada a pandemia, o mundo será mais pacífico? Haverá mais cooperação?
Ásia e Oceania tiveram uma performance muito melhor no combate à covid-19 do que a Europa Ocidental e os EUA. Bélgica, Suécia, França, Reino Unido, todos foram muito mal. Quando você olha para o Leste Asiático, você vê um desempenho bom, tanto em nações ricas como Japão e Coreia do Sul, Singapura e Taiwan quanto em países um pouco mais pobres, como o Vietnã. A Ásia teve um grande desempenho nesse combate. Na questão da vacinação, a gente vê o Ocidente largando na frente, mas também porque está em uma situação muito mais grave. A pandemia só acentuou movimentos que já aconteciam, o crescimento da adversariedade entre os EUA e a China. Eles foram inimigos no passado, aí se aproximaram, viraram parceiros comerciais, rivais em algumas áreas, mas, aos poucos, além dessa rivalidade, começaram a se tornar adversários também. A pandemia acentuou essa situação por culpa tanto da China quanto dos EUA.
Qual a responsabilidade da China no início do coronavírus?
Primeiro em relação aos EUA, a China adotou uma postura mais nacionalista nos últimos anos devido à chegada de Xi Jinping ao poder, mesmo à parte da pandemia. A China também tem adotado politicas muito mais radicais, a perseguição aos uigures, aos movimentos pró-democracia em Hong Kong. Em relação à pandemia, faltou enorme transparência dos chineses no período inicial da pandemia e isso teve efeito grave no resto do mundo. Se eles tivessem sido mais transparentes desde o início, certamente teria reduzido o número de mortos. Não que tivesse impedido a pandemia, já era inevitável.
O que você espera do governo Biden, essa confrontação com a China vai continuar?
Deve mudar o discurso. Biden não vai adotar um discurso que muitas vezes é preconceituoso
da administração Trump em relação à China, mas há muita concordância por parte dos democratas em relação à postura chinesa na área comercial. Nesse ponto, não deve ser muito diferente do que o governo Trump. Devem continuar algumas batalhas na área comercial, mas devem ser mais assertivos em temas de direitos humanos, com dos uigures e Hong Kong. Nesse sentido, não muda muito. Por outro lado, tenderão a trabalhar com a China em questões multilaterais, seja Coreia do Norte, Irã, na questão do clima, da OMC (Organização Mundial do Comércio), eles vão trabalhar mais em conjunto. Embora seja mais assertivo em temas de direitos humanos, terá uma linguagem menos preconceituosa na forma como se refere à China. Quando Trump fala em "vírus chinês", muitas vezes ele adota um tom que vai além do necessário, mesmo com o país sendo nesse momento um adversário em algumas questões. Mas a China é o principal parceiro comercial dos EUA e vai continuar sendo, não há como os americanos evitarem negociar com o país.
Você normalmente retrata os EUA para o Brasil. Vivendo tantos anos fora, como vê a imagem do nosso país?
O Brasil ainda é visto como uma nação grande entre os países emergentes economicamente. Tinha uma imagem melhor, ela se deteriorou especialmente por causa do comportamento do atual governo na área ambiental. Na questão ambiental, o Brasil é um gigante. A política ambiental do Brasil é ultra importante em qualquer discussão no planeta. A questão do meio ambiente é prioridade do mundo, não exatamente nesse momento por causa da pandemia, mas nos últimos anos e nos próximos com certeza. É prioridade do governo Biden, basta ver a nomeação de John Kerry (ex-secretário de Estado do governo Barack Obama, escolhido para uma secretaria especial na futura administração). O comportamento de Jair Bolsonaro nessa questão, com muitas posições vistas como negacionistas pelo Ocidente, tem prejudicado bastante a imagem brasileira, assim como as queimadas na Amazônia, tem efeito negativo. Ian Bremmer, o presidente da Eurasia Group (consultoria sobre riscos e ameaças globais), em sua análise semanal, fala da diplomacia do clima, que será a questão mais importante do governo Biden e menciona o Brasil como um dos perdedores. E fala que o Brasil talvez se torne o primeiro país a ser alvo de sanções na área climática e pária internacional. É uma pena.
Você tem adotado uma postura mais informal em seus comentários na TV, falando sobre futebol e natação ao mesmo tempo em que faz análises geopolíticias. No livro, você aborda esses aspectos mais pessoais ao lidar com a pandemia?
Há um capítulo só sobre natação, sobre o tempo em que fiquei sem nadar durante a pandemia. Todo mundo teve algo que precisou deixar de fazer. Conto sobre o tempo em que fiquei sem nadar e de quando finalmente consegui entrar no mar para praticar a natação. O último capítulo é sobre isso, para levar um lado pessoal ao leitor. Minha mulher, meus filhos, a gente ficou muito junto. Teve essa coisa: trabalhando de casa, morando em outro país, acaba todo mundo ficando muito mais próximo.
Como foi equilibrar o lado pessoal, a rotina da família, com o trabalho em casa?
Faz falta estar em estúdio, inclusive na eleição americana pude voltar à Redação, foi a única semana em que a gente trabalhou de lá. A rotina foi parecida com a de todo mundo, com a vantagem em relação a outras pessoas que, em geral, trabalho em um horário em que meus filhos já estão indo dormir. Foi um desafio. Continua sendo. Não sei quando a gente voltará para o estúdio. Houve essa vantagem de estar mais próximo dos filhos e a desvantagem de ficar longe dos colegas jornalistas porque estar na Redação é importante, você conversa com outras pessoas pega insights conversando com outros jornalistas. Há toda uma dinâmica, é muito importante esse diálogo de Redação.