Em meio ao silêncio do mundo, a população da Caxemira vive uma realidade paralela: além da pandemia de coronavírus, os moradores estão, desde 5 de agosto do ano passado, sob intervenção do governo indiano e diante da ameaça de uma guerra com potencial nuclear. A região do Himalaia é disputada há décadas por Índia e Paquistão.
Além da questão religiosa - entre muçulmanos e hindus em uma área de maioria islâmica, há a disputa estratégica do ponto de vista hídrico, porque abrange as nascentes dos principais rios da Índia e do Paquistão - o Ganges e o Indo.
O governo indiano decidiu impor uma lei de silêncio na Caxemira. Repórteres estão sendo vítimas de violência por exercerem o trabalho de denunciar as violações de direitos humanos. Não é incomum jornalistas serem presos e interrogados. Mais: 16 dos 50 assassinatos de ativistas pró-independência este ano ocorreram durante a pandemia.
Onze não tiveram os corpos entregues às famílias e foram considerados terroristas. A internet de alta velocidade foi cortada na região, para evitar a publicação de sites de notícias. Sajjad Haider, presidente da Associação de Editores da Caxemira, tem sido uma das poucas vozes independentes a denunciar os desmandos do governo indiano, do primeiro-ministro Nadrendra Modi, na região. Em entrevista à coluna, o profissional, que cobriu a Guerra do Golfo, conta, diretamente de Srinajar, como é trabalhar na região em meio às pressões.
A Caxemira permaneceu confinada por vários meses, com a internet ainda proibida em algumas regiões. Existem duas crises juntas: a pandemia e a retomada do controle pelo governo indiano?
É uma situação sem precedentes, mesmo para os padrões da Caxemira. É um golpe duplo para as pessoas que vivem aqui. Na véspera de 5 de agosto de 2019, todas as liberdades civis foram suspensas com um toque de recolher estrito ao movimento de pessoas e até mesmo aos repórteres. Todas as linhas de comunicação, como a internet, telefones fixos foram fechados. Isso continuou por meses. Assim que o governo começou a reduzir algumas restrições, tivemos a pandemia e o segundo bloqueio.
Sem Internet, como os jornalistas continuam operando sites de notícias?
A mídia da Caxemira demonstrou extraordinária resiliência e coragem. Não encontrei nenhum jornal circulando durante os prolongados toques de recolher, com restrições até mesmo à movimentação de repórteres, um total bloqueio de comunicação. Para facilitar a visita de repórteres de Nova Délhi e daqueles que trabalham para as autoridades de mídia do governo abriram um quiosque de internet que chamaram de "Centro de Facilitação de Mídia" na capital, Srinagar, após alguns dias do primeiro bloqueio. Tinha apenas alguns computadores funcionando com internet 2G, com dezenas de repórteres esperando na fila pela sua vez de transmitirem suas reportagens. Depois, repórteres que trabalharam para jornais locais foram autorizados a entrar no centro após muita pressão. Eles tinham de andar por várias ruas sob toque de recolher para chegar àquele local, mas raramente tinham a chance de se sentar em um computador por mais do que alguns minutos. Mesmo assim, começamos a acessar arquivos e e-mails de nossos editores. Como era óbvio, o corte significava que deveríamos encerrar nossos jornais. Mas na Caxemira, com uma população de 8 milhões de habitantes, até mesmo as redes a cabo que forneciam canais de televisão à população também foram fechadas, de modo que apenas os jornais locais poderiam registrar esses eventos extraordinários, mesmo que isso significasse comprometer a qualidade. Vários jornais locais foram talvez a única entidade civil viva quando tudo foi congelado, sob o bloqueio sem precedentes após 5 de agosto. Acho que demos uma nova definição de jornalismo para o mundo. O Kashmir Observer foi talvez o único jornal que manteve viva sua edição online. Enviamos um editor a Nova Délhi para manter nossa edição online atualizada. Disponibilizamos jornais para nosso pessoal e mantivemos o mundo informado por meio da internet quando nossos canais de receita foram bloqueados e quando houve um bloqueio total da internet. Isso é inédito na memória recente.
Nos últimos meses, houve ataques entre militares indianos e paquistaneses nas fronteiras. Qual é o risco real de guerra?
As relações entre Índia e Paquistão já estão tensas. Eles têm escaramuças quase diárias com soldados e civis morrendo na linha de controle militar que divide a Caxemira entre os dois. Mas, depois de 5 de agosto de 2019, a maior preocupação aqui é a escalada com a China. Pela primeira vez, desde a guerra de 1962, ambos os lados estão usando armas de fogo. Há um impasse tenso e receios de um inverno quente.
E se houver guerra, pode ser nuclear. As pessoas comentam esse risco nas ruas?
Não creio que nenhum lado possa pagar para ver uma guerra nuclear, mas existe um risco real de guerra e as pessoas estão preocupadas.
Qual é a sua localização e quão perto está das áreas disputadas?
Estou em Srinagar, capital da Caxemira administrada pela Índia. A Caxemira está espremida entre três potências nucleares que estão virtualmente em estado de guerra.
Na guerra, "a primeira vítima é a verdade". A Caxemira é uma região disputada entre Índia e Paquistão. Como é o impacto das notícias falsas? Existe algum tipo de guerra de desinformação?
A mídia tradicional na Caxemira, que é regulamentada por acordos de licença, está cara a cara com a mídia não regulamentada, que cresceu exponencialmente nos últimos anos. Também enfrentamos o desafio das redes social, em que páginas e plataformas de notícias não autorizadas distribuem notícias falsas ou não verificadas para buscar likes e engajamento. Eles representam um desafio para nós, porque levamos tempo para verificar os fatos antes de divulgá-los. Esse é um problema universal, não exclusivo da Caxemira. O que é exclusivo da Caxemira é que as autoridades aqui não fazem distinção entre plataformas digitais de jornais estabelecidos e aquelas criadas por usuários de redes sociais. Às vezes, eles são preferidos às edições online de jornais locais.
Você cobriu a Guerra do Golfo. Existe alguma semelhança com o que você está testemunhando?
Aquela guerra foi mais fácil de cobrir em comparação com este conflito de baixa intensidade, onde parece que não há fim. Além disso, naquela guerra, não nos deparávamos com forças obscuras e pressões sutis. As linhas lá estavam demarcadas, enquanto na Caxemira elas permanecem cinzentas.
Quais são os principais desafios dos jornalistas para fazerem a cobertura da Caxemira?
Embora a mídia da Caxemira tenha demonstrado resiliência e vivacidade, o jornalismo político-econômico contemporâneo aqui corre o risco de morrer. Isso não só constituiria uma tragédia, mas algo de enormes proporções, uma vez que uma mídia robusta é o sangue vital de qualquer sociedade e governo.
Existe censura? Controle de informações? Como você sente esses impactos?
Não há censura em si. Mas, às vezes, é criada uma situação em que se torna pior. Na maioria das vezes, é difícil buscar uma versão policial da história, pois eles desconsideram a mídia local e preferem falar com pessoas que vem de Nova Délhi. Há uma percepção de que os jornalistas baseados na Caxemira não são simpáticos a eles.
A Índia realizou durante a pandemia o maior confinamentos do mundo. Mas, algumas semanas depois, o governo reabriu a economia. Hoje o país já ultrapassou o Brasil em casos de covid-19, ficando em segundo lugar no mundo em vítimas. Quais foram os erros?
Acho que não é prático impor um bloqueio efetivo em um país vasto como a Índia. Só precisava de um bloqueio inteligente. Este é um país onde um terço, senão metade da população, vive nas ruas e vimos como, nos primeiros dias de confinamento, massas de trabalhadores migrantes se moviam desordenadamente por falta de abrigo. Então, o que estamos testemunhando agora é o resultado disso.