Antes de mais nada, a ordem americana para que a China feche o consulado de Houston é algo grave nas relações internacionais. Depois das embaixadas, os consulados são as principais representações dos governos dentro do território de um país. Embora o princípio da extraterritorialidade (que considera prédios diplomáticos territórios da própria nação e, portanto, invioláveis) seja algo discutível no direito internacional, esses edifícios representam os máximos interesses de um Estado dentro de outro. Portanto, mandar fechar um consulado ou uma embaixada só é menos grave na escalada de tensões entre dois países do que romper relações diplomáticas.
Por isso, é possível pensar que a ordem desta quarta-feira (22) dada pelo governo Donald Trump seja o ponto mais frágil a que chegam as relações entre Washington e Pequim desde a retomada dos contatos entre os dois países, costurada pelo ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger, nos anos 1970, para muitos, tendo como efeito colateral o início do fim da URSS.
Cenas de funcionários queimando documentos, flagradas em imagens aéreas publicadas pela BBC, remontam à Guerra Fria e dão sinais de que os chineses avaliam que, tão logo saiam, o prédio será virado do avesso por autoridades americanas em busca de evidências de que Pequim usa suas representações para espionar - senão, roubar - dados americanos - argumento anunciado para a tomada de decisão desta quarta.
Mas o que está por trás dessa manobra da Casa Branca de dar 72 horas para o fechamento do consulado? Primeiro, Trump é um presidente que costuma agir desta forma nas negociações internacionais (e domésticas): bate primeiro para provocar um escândalo, assustar o oponente e, depois, suaviza a fala. O famoso morde e assopra já visto em outras crises, como com a Coreia do Norte e o Irã.
Segundo, a decisão precisa ser entendida no contexto da campanha eleitoral americana. Estamos a pouco mais de três meses da eleição, Trump perde, segundo as pesquisas, no voto nacional e nos principais swing states, os campos de batalha que, de fato, decidem o pleito. Falar grosso com os chineses é jogar para o seu eleitorado mais fiel: branco, hétero, do interior, do americano sem formação universitária, idoso, justamente aquele que, também segundo estudos, migram para o lado democrata. É um jogo desesperado para recuperar a vantagem do rival Joe Biden.
Mas nem tudo se explica pela eleição. O argumento americano de que os chineses roubam dados de pesquisas e empresas do Ocidente, repetido em vários momentos por funcionários dos Estados Unidos no Exterior, ganhou força na semana passada, depois de um relatório britânico segundo o qual hackers russos, aliados ao Kremlin, tentaram furtar informações sobre os estudos da vacina do coronavírus. Dos russos para os chineses, inimigos principais de Trump, é um pulo. Rapidamente, a inteligência americana identificou tentativas semelhantes de Pequim.
A escalada também ganhou força nos últimos dias com a pressão chinesa sobre Hong Kong, enclave capitalista na potência comunista.
Tudo isso aumenta a tensão entre os dois países, que, perigosamente, migra do campo comercial para o diplomático. No dia a dia, disputas recentes já incluíram a emissão de regras de viagem semelhantes aos da Guerra Fia para diplomatas e a exigência de que várias organizações de mídia chinesa se registrassem como entidades diplomáticas - ou seja, dando caráter governamental a empresas jornalísticas. O governo também considera proibir viagem de membros do Partido Comunista chinês e suas famílias aos Estados Unidos.
Uma medida como a desta quarta-feira (22) já ocorreu antes? Já e não faz muito tempo. Em 2017, o governo Trump mandou a Rússia fechar o consulado em São Francisco, por conta da suposta interferência do Kremlin nas eleições de 2016.
A diplomacia chinesa, famosa pelo baixo perfil, tem mudado de estratégia nos últimos meses, tornando-se mais assertiva. Um ataque tem sido respondido por contra-ataque. A ameaça chinesa de retaliação até o momento dá conta de que Pequim pode ordenar o fechamento do consulado americano de Wuhan, local onde surgiu o coronavírus. Seja ou não esta a decisão, a reação virá, com certeza, nas próximas horas.