Ambos seguiram a cartilha da diplomacia, mas as divergências entre os presidentes Jair Bolsonaro e Alberto Fernández ficaram explícitas nas entrelinhas dos discursos desta quinta-feira (2) durante o encontro de chefes de Estado da Cúpula do Mercosul. Em razão da pandemia, a reunião foi realizada pela primeira vez por videoconferência. Foi a primeira vez que os dois se encontratam, mesmo que virtualmente.
O presidente argentino falou antes do brasileiro. Com ênfase na integração, Fernández abordou três tópicos que soam como alfinetadas a Bolsonaro, com quem tem divergências ideológicas profundas. Ele não citou o presidente brasileiro em nenhum momento da fala.
1 - Fernández afirmou que diferenças que possam surgir no interior do bloco devem passar a um segundo plano.
- O importante é o desejo de nossos povos de vincular, acima dos governos, que ocasionalmente governam cada uma das nossas Repúblicas.
O que quis dizer: Fernández e Bolsonaro têm visões antagônicas sobre o Mercosul (para dizer o mínimo). Na fala, o argentino foi conciliador, pregando interesses comuns, apesar das rixas entre os dois. Fernández tem como vice-presidente Cristina Kirchner (ela e o marido, Néstor, comandaram a Casa Rosada durante os governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff no Brasil). Bolsonaro os considera comunistas (ainda que o comunismo passe ao largo do kirchnerismo).
Durante a campanha presidencial, em 2018, o então candidato Bolsonaro, em visita ao Rio Grande do Sul, disse que o Estado poderia se tornar "um novo Estado de Roraima", caso a dupla vencesse o pleito no país vizinho, em uma referência à crise na Venezuela e a consequente onda de refugiados que migram para o Brasil. Fernández participa do Grupo de Puebla, que reúne políticos de esquerda e serve de ponte internacional para Lula.
2 - Ao reafirmar a necessidade de integração regional, Fernández afirmou que a união dos povos precede a nossa posição "como governantes ocasionais".
O que quis dizer: mais uma vez, o argentino tentou encontrar pontos em comum, colocando interesses da região acima de divergências entre os líderes. O Planalto e o Itamaraty têm priorizado alinhamentos estratégicos bilaterais, como com os Estados Unidos.
3 - Em outro trecho da fala, Fernández afirmou que o mundo se globalizou:
- Isso é fato. Brigar contra isso é bobeira, o que não é bobeira é ver como nos integramos a um mundo globalizado como região.
O que quis dizer: ao dizer que brigar contra a globalização é "bobeira", Fernández provocou o governo brasileiro, que, seguidamente, tem criticado o chamado "globalismo" (suposto movimento de esquerda que estaria impregnado nas relações internacionais e órgãos multilaterais, como as Nações Unidas.
Bolsonaro, na sequência, foi mais explícito nas alfinetadas ao argentino. Mas, ao contrário de Fernández, citou o colega. Mesmo que apenas nos cumprimentos iniciais. Em três pontos, provocou o vizinho.
1 - O brasileiro defendeu a revisão da Tarifa Externa Comum (TEC), usada nas relações comerciais entre o Mercosul e outros mercados. O Brasil busca abrir as negociações de livre comércio a outros países, como Vietnã, Coreia do Sul, Líbano e Canadá, reduzindo as alíquotas de importação.
- A reestruturação interna e a reforma da TEC são medidas indispensáveis para consolidar o Mercosul como fonte de prosperidade para nossos povos - disse.
O que quis dizer: O governo argentino puxa o freio de mão, preocupado em proteger sua indústria. Há poucos meses, anunciou que se retiraria das negociações em bloco para cuidar de sua economia.
2 - Antes de encerrar o discurso de seis minutos, Bolsonaro citou dois temas que são a pedra no sapato do Mercosul. O primeiro deles, a Venezuela.
- Estamos na expectativa de que (a Venezuela) retome o quanto antes o caminho da liberdade.
O que quis dizer: o governo argentino, ao contrário do Brasil, defende a permanência de Nicolás Maduro no poder e não reconhece Juan Guaidó, líder da oposição, como presidente do país.
3 - O segundo tema que Bolsonaro usou para alfinetar o vizinho foi a Bolívia. A presidente Jeanine Áñez, que assumiu o governo do país vizinho após a renúncia de Evo Morales, estava presente virtualmente no encontro como membro associado. O brasileiro lamentou que ela não tenha participado ativamente dos trabalhos realizados pelo Mercosul nos últimos seis meses.
O que quis dizer: o governo Fernández não reconhece Áñez como presidente da Bolívia. Morales está exilado na Argentina.