Coordenador nacional do Mercosul e o secretário de relações bilaterais e regionais nas Américas do Itamaraty, Pedro Miguel da Costa e Silva, afirma que a decisão da Argentina de não participar de futuras negociações comerciais do bloco, não foi recebida com surpresa pelo governo.
Desde a posse do presidente Alberto Fernández, em dezembro, havia, segundo ele, sinais de que a Casa Rosada tinha visões divergentes sobre acordos de livre-comércio como nações como Canadá, Coreia do Sul e Singapura. O embaixador, que liderava pelo Brasil a reunião por videoconferência na sexta-feira em que os argentinos anunciaram sua decisão, acredita que, agora, Brasil, Paraguai e Uruguai poderão acelerar os diálogos com essas nações uma vez que compartilham da mesma visão. Ele também descarta que a iniciativa argentina signifique o fim do Mercosul.
- O Mercosul vai seguir adiante como bloco, só que vamos ter de nos adaptar ao fato de que um membro do bloco que quer ficar parado na garagem e os outros que querem seguir - afirmou à coluna.
A seguir, trechos da entrevista concedida nesta segunda-feira por telefone.
Como a decisão argentina foi recebida pelo governo brasileiro?
Recebemos com tranquilidade, porque não foi nenhuma surpresa. Para nós, essa possibilidade estava nas cartas desde que mudou o governo na Argentina. Sabíamos que o governo tinha uma orientação distinta em termos de política comercial e econômica, então isso era uma possibilidade. Também, de certa forma, a maneira como foi dada a notícia é um sinal de transparência por parte dos argentinos, e eu prefiro a transparência e a certeza - agora está bem claro o que eles querem e o que não querem - do que eu ter uma situação de incerteza, em que as coisas não estão claras. Porque daí dificulta o meu trabalho.
Como essa decisão pode ser positiva para o Brasil, no momento em que um parceiro importante como a Argentina decide sair da mesa de negociações?
Evidentemente que o ideal seria que os quatro continuassem nas negociações. Como o fato de Argentina decidir que não quer mais participar, vai se ter uma mudança na máquina durante o percurso. Mas por que é positivo? Os três, Uruguai, Paraguai e Brasil, estão totalmente alinhados em termos de objetivos: queremos esses acordos, avançar o mais rapidamente possível com parceiros importantes, queremos concluir essas negociações com Canadá, Coreia do Sul, Singapura, Líbano, e iniciar outras com países da América Central, e com outros parceiros no Sudeste Asiático, como Vietnã, Indonésia. Gostaríamos de avançar com o Japão, quando ele estiver pronto. O fato de você ter três países agora que estão bem alinhados faz com que seja mais rápido avançar. Antes, você tinha um quarto país que tinha dúvidas, ressalvas, que não estava totalmente convencido e que tinha uma agenda mais fechada do que a nossa em termos de avançar nesses acordos. Por um lado, você muda o jogo. Mas por outro facilita a partida.
Os termos ficam mais claros?
Você tira um dos elementos da equação, mas talvez, de certa forma, se consiga avançar de forma mais rápida na busca de resultados. Agora, estão os três países alinhados.
Mas como bloco é um retrocesso, não?
Os americanos usam a expressão do copo meio cheio, meio vazio. Eu gosto de ver o copo meio cheio. Não creio que seja um retrocesso. No ano passado, tivemos dois grandes avanços, que foi a conclusão das negociações com a União Europeia (UE) e com o Etfa (bloco europeu formado por Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein). Estamos nos finalmente com esses e é importante lembrar que a Argentina, quando anunciou que não vai continuar com os acordos, deixou claro que tenciona nos acompanhar em fechar essas negociações, últimos detalhes, podermos ir para a assinatura dos acordos com os europeus. Vínhamos desse êxito. Agora, embarcamos em uma agenda de continuação dessas negociações. É positivo que a gente possa continuar agora, e não ficar em modo de espera. Porque o que a gente estava desde dezembro, com o novo governo argentino, era no modo de espera. Os argentinos pedindo tempo, dizendo que iam ter de ver, com dificuldade de apresentar algumas informações nas negociações, em ritmo diferente. Com a saída dos argentinos da mesa, as coisas vão ficar mais fáceis, vai ser mais fácil avançar nesses acordos. É importante desmistificar o Mercosul. Eu usei uma expressão: "desdramatizar essa decisão argentina". Com você, vou usar desmistificar. É importante saber o que o Mercosul é o que o Mercosul não é. O Mercosul sempre foi um animal de transição entre um mamífero e réptil, entre o herbívoro e o carnívoro. Tem uma série de furos, de gambiarras, de jeitinhos. Não é propriamente um relógio suíço. O fato de estarmos perante esse novo desafio não é nada de novo na história do Mercosul. O Mercosul vai seguir adiante como bloco, só que vamos ter de nos adaptar ao fato de que um membro que quer ficar parado na garagem e os outros que querem seguir. Um que quer parar e pensar, e outros que querem seguir. Isso é um sinal, no fundo, até positivo de adaptação do bloco à nova realidade.
Desidealiza a ideia de bloco, de sonho de integração?
É só você ver o que está acontecendo com Brexit para você voltar um pouco à realidade. Uma coisa é a UE do filme, outra a do dia a dia. Nenhum desses blocos é perfeito. Não é uma caixa estanque, todos têm seus furinhos. É preciso uma certa dose de realismo.
Na relação bilateral, o que me dizem meus colegas do Ministério da Agricultura é que estamos avançando muito bem, inclusive com a perspectiva de eliminar barreiras sanitárias e fitossanitárias de parte a parte.
Mas livre-comércio é a pedra fundamental do bloco. No momento em que a Argentina não quer mais participar das negociações não parece que o próximo passo seira sair oficialmente do bloco?
Uma coisa que é importante esclarecer: a Argentina reafirmou seu compromisso com o Mercosul e com o processo de integração. A única coisa que não quer é continuar nesses processos em curso e em novos processos de negociação de acordos extra-zona. Isso não quer dizer que acabou o Mercosul, todo o trabalho que a gente faz nos grupos e instâncias do Mercosul para harmonizar as nossas regras, os nossos procedimentos de comércio. O projeto de integração continua. O que muda é a agenda externa. É preciso separar as coisas.
Na nota em que anuncia sua decisão, o governo argentino fala em "contraste com as posições de alguns parceiros". Que peso tiveram as divergências ideológicas entre os governos para essa medida?
Não vou comentar a decisão do governo argentino. É uma decisão deles. A justificativa dada pelo meu colega argentino, na sexta-feira (24), foi de explicar que eles não poderiam seguir avançando em função do quadro interno na Argentina, a crise econômica e social, e que isso ganhou um elemento adicional com a covid-19. E que a visão que eles têm do quadro que estão vivendo internamente, agora com impacto da covid-19 e o mundo que vem depois, é que não é o momento para avançar em acordos comerciais. Essa é a visão argentina. A visão do Brasil, do Paraguai e do Uruguai é oposta a essa: de que, em momento de crise, de covid-19, de impacto na economia mundial, o que precisamos é de mais acesso a mercados, de mais comércio, de mais integração com a economia global e de criar novas oportunidades. Não acreditamos que esse seja o momento de parar a negociação dos acordos.
O embaixador José Botafogo Gonçalves disse que a decisão argentina pode ter sido tomada devido ao nervosismo em razão da pandemia. O senhor acha que é nervosismo ou algo estratégico? Já havia sinais na cúpula de Bento Gonçalves?
Não, porque na reunião de cúpula era o governo Mauricio Macri. A reunião de Bento foi muito bem sucedida, muito exitosa, cheia de resultados importantes para o Mercosul.
Mas já havia sinais?
Não tinha sinais. O sinal que a gente sabia era de que o novo governo, depois da reunião de Bento, podia mudar. Por isso, eu disse que não foi surpresa ou um susto. Era uma das coisas que poderia acontecer. Esperávamos que a Argentina continuasse conosco. Mas ela decidiu que não ia continuar, mas nós, os outros três, temos de continuar no nosso caminho. Não é possível que, por causa da decisão de um membro de que não quer mais continuar com todas as negociações, os outros três fiquem parados, esperando até o dia em que a Argentina decidir que quer de novo ter uma agenda externa. Esse é um cenário que não existe e que para nós não é aceitável.
Eu posso assegurar que não é o fim do Mercosul. O Mercosul é um bicho muito resistente e que se adapta com facilidade e inclusive na adversidade.
O que o senhor diria ao setor do agronegócio do Rio Grande do Rio Grande do Sul diante das preocupações sobre o futuro do Mercosul?
Vou dar alguns recados. O primeiro e mais importante é que tenho notícias de que a relação entre os ministros de Agricultura do Brasil e da Argentina é estupenda. Uma coisa é essa decisão da Argentina das negociações externas, outra coisa é o trabalho interno do Mercosul e outra ainda é a agenda bilateral. Na relação bilateral, o que me dizem meus colegas do Ministério da Agricultura é que estamos avançando muito bem, inclusive com a perspectiva de eliminar barreiras sanitárias e fitossanitárias de parte a parte. É uma boa notícia. O segundo recado é que o setor pode ficar tranquilo que vamos continuar trabalhando nesses acordos internacionais para criar novas oportunidades e igualar as condições que outros fornecedores têm em terceiros mercados. Ou seja, vamos continuar com essa agenda, e o agronegócio é prioritário para nós nessas negociações. Com todos esses parceiros, estamos tentando reduzir barreiras tarifárias e não tarifárias para facilitar o acesso dos produtos brasileiros em terceiros mercados. É uma mensagem de otimismo que eu transmitiria. Uma coisa é a decisão da Argentina, outra é o nosso firme empenho e disposição de continuar abrindo mercados e criando oportunidades para nosso agronegócio.
Em algum ponto a saída da argentina pode prejudicar o Brasil?
Nesse momento, não. Estamos trabalhando de forma muito intensa para partir para a próxima etapa, que é as negociações sem a Argentina.
Haverá alguma tentativa de reversão da decisão argentina por parte do Brasil?
Não.
Como bloco, pode haver uma suspensão da Argentina?
A reunião com os argentinos foi muito cordial, tranquila e técnica. Nesse momento, estamos trabalhando com espírito de cooperação para encontrarmos a melhor solução para todos. Jornais argentinos falaram em judicialização, tribunais. O Brasil não está pensando em nada disso. Estou caminhando pela sombra, para tentar encontrar uma solução rápida, porque temos pressa. Não quero ficar parado. Não considero esse tipo de solução (suspensão da Argentina do bloco).
Chegou a ser tentado um encontro entre os dois presidentes Jair Bolsonaro e Alberto Fernández? A falta de relação entre os dois prejudicou de alguma forma?
Não creio que as relações tenham sido afetadas pela falta de encontro dos presidentes. Não houve esse encontro por uma questão de agenda de parte a parte. Houve um momento em que se pensou que eles iam se encontrar na posse do novo presidente do Uruguai, mas o presidente argentino decidiu não ir, então não houve o encontro. Desde então, acho que os presidentes têm tido suas próprias agendas. Além disso entramos em etapa de covid-19, não há mais visitas. Não houve nenhum encontro eletrônico entre presidentes. O encontro que houve do Mercosul, que participaram todos os presidentes, uma videconferência sobre a covi-19, não estava o presidente Fernández.
O senhor pode garantir então que não é o fim do Mercosul?
Eu posso assegurar que não é o fim do Mercosul. O Mercosul é um bicho muito resistente e que se adapta com facilidade e inclusive na adversidade. Uma das coisas boas é que o Mercosul é flexível e se adapta. Vamos trabalhar por isso. Estou trabalhando de forma pragmática e otimista para encontrar a melhor solução para o novo quadro.Na relação bilateral, o que me dizem meus colegas do Ministério da Agricultura é que estamos avançando muito bem, inclusive com a perspectiva de eliminar barreiras sanitárias e fitossanitárias de parte a parte.