Nascida no Chile e radicada há 25 anos em Porto Alegre, a professora de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Jacqueline Haffner desembarcou na Espanha no dia 6 de março para passar seis meses como pesquisadora visitante da Universidad Autónoma de Madrid. Menos de uma semana depois, o país mergulhava na devastação do coronavírus e ela ficaria um mês e meio em quarentena forçada no apartamento em La Latina, região central da capital espanhola. Só saía para comprar comida em um mercado próximo. Mesmo assim, os alimentos eram escassos.
Ela conta que não havia carne e só foi comer alface ao desembarcar de volta em Porto Alegre, na segunda-feira (20). Pós-doutora em Economia e professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS, Jacqueline procurou a coluna porque, diante do drama vivenciado na Espanha, gostaria de fazer um apelo aos gaúchos:
- Se pudesse pedir alguma coisa, se você pudesse terminar essa entrevista com essa frase: “Por favor, fique em casa” - pediu. - A Espanha tem 45 milhões de habitantes e nós, 200 milhões. Se tivermos mortos nessa proporção, não sei o que vamos fazer.
A seguir, a pesquisadora, que retornou ao Brasil sem conseguir ter realizado sua pesquisa na Espanha, conta como foram seus dias de confinamento.
Quando a senhora chegou a Madri a situação ainda estava sob controle?
No dia 8 de março, houve uma grande manifestação em Madri pelo Dia da Mulher, e o primeiro-ministro Pedro Sánchez, um homem progressista, muito jovem que tem como uma das plataformas políticas a questão da mulheres, manteve a passeata. Já havia uma calamidade muito grande na Itália, mas ele não a cancelou. Madri inteira testemunhou uma manifestação enorme, com muitas mulheres. Pressupõe-se que, nessa passeata, muita gente foi infectada, inclusive a mãe e a mulher dele. Na segunda-feira (9), me apresentei à universidade, mostraram-me a sala onde eu iria trabalhar. Na quarta-feira (11), já suspenderam todas as aulas. No sábado (14), o país já entrou o estado de alerta.
Começava o seu drama particular?
Esse estado de alerta proibia que as pessoas saíssem na rua. Somente poderiam sair para comprar alimentos, ir ao hospital, e o trabalho só era permitido para atividades absolutamente necessárias. O resto teve de começar a trabalhar em casa. Passei um mês e meio trancada dentro do apartamento. Impressionou-me a disciplina dos espanhóis, que, em geral, respeitaram muito a convocação do presidente. Quem não ficava em casa, a polícia parava, havia multa e até prisão.
Em que momento o sistema entrou em colapso?
Houve grande discussão política, porque o presidente foi acusado de que deveria ter suspendido a passeata pelo Dia da Mulher e que demorou para fechar o país. Mas a situação parecia estar sob controle. Eu não pensava em voltar. Minha avaliação era de que seria uma coisa passageira e que tudo logo voltaria à normalidade. Em questão de uma semana, a situação começou a se agravar. Como o vírus demora até 14 dias para se manifestar, todas as pessoas que foram contaminadas ficaram doentes no mesmo período. Começou o problema do colapso dos hospitais. Eles não estavam preparados. A avaliação era de que não iriam sofrer a mesma situação da Itália. Só que, em questão de duas semanas, a situação ficou caótica. Não existia equipamento de segurança para os médicos. Havia médicos fazendo avental de proteção com saco plástico, amarrando saco plástico nos pés, pedindo doações. O que mais reivindicavam era material de segurança para enfrentar a situação. Quando a situação começou a ficar muito ruim, começaram a montar hospitais de campanha, com militares, a aumentar os leitos, mas já estava morrendo muita gente. E havia uma questão dramática para as famílias: muitas pessoas levavam o pai, a mãe, ao hospital, mas não podiam entrar, acompanhar. Muitas vezes, não voltavam a vê-los. As pessoas morriam e continuam morrendo sozinhas. Isso gerou uma comoção muito grande. As pessoas falam: “Puxa, deixei meu pai aqui e agora estão me dizendo que ele está morto”. Pessoas chorando na porta do hospital. Aumentou muito o número de mortos, e a cidade de Madri não estava dando conta mais de enterrá-los. Eles comparavam a situação com a Segunda Guerra Mundial. Não lembravam de algo tão terrível. Havia vovozinhos remanescentes da Segunda Guerra e da Guerra Civil que contavam que não se lembravam de outra situação semelhante no país a não ser na guerra. Não conseguiam enterrar tanta gente. Começaram a pedir autorização para as pessoas para levar os mortos para outras cidades próximas para cremar. Madri já não dava conta. Chegou um momento em que as mortes eram tantas que começaram a colocar os mortos em uma pista de patinação no gelo. Terrível.
Não existia equipamento de segurança para os médicos. Havia médicos fazendo avental de proteção com saco plástico.
Como a senhora passava os dias confinada?
Ficava lendo, acompanhando, ouvindo discursos, vendo como o governo estava conduzindo a situação. O presidente falava uma vez por semana, e os ministros diariamente. Fiquei trancada dentro de casa. Apenas quando não havia mais nada para comer, eu saia para ir ao mercado, com máscara, toda protegida. Gosto muito de ler Gabriel García Marquez (escritor colombiano), que é muito detalhista, mas nunca li nem vi uma situação como essa na minha vida. De tão terrível que foi.
A senhora pensou em voltar para o Brasil?
Não acreditava que ia ficar assim. Antes de viajar, perguntei sobre coronavírus a quatro médicos, se eu poderia viajar. Todos me disseram que sim, que era um problema que logo estaria resolvido. Fui tranquila, achando que ia passar logo. Mas ao longo das últimas três semanas comecei a ver que era uma coisa muito grave. Não era um probleminha. Era um problemão.
É uma situação de colapso mundial. Não é possível que as pessoas não consigam enxergar a gravidade. Está faltando comida, não tem verduras.
Que notícias a senhora acompanhava sobre o coronavírus no Brasil?
Lia muito sobre o Brasil. Fala-se que aqui temos uma população em idade média mais jovem, mas, mesmo assim, o coronavírus também afeta gente jovem. Mesmo que eles venham a se salvar, vão ocupar leitos que pessoas de mais idade poderiam estar ocupando, e que não vão se salvar por não haver vaga. Percebo que o Brasil, em geral, não está levando a sério essa situação. Na Europa, todo mundo está. Se alguém sai na rua, todo mundo grita das sacadas: “Vai para casa, não pode ficar na rua, pelo amor de Deus. Não faça isso, faça por nós”. Os médicos falam: “Se você não faz isso (ficar em casa) por você, faça por nós, que estamos aqui, na linha de frente desse problema, e estamos enfrentando muitas dificuldades”. Uma enfermeira falou: “Trabalho em pronto-socorro há 30 anos, e ontem foi a primeira vez na vida que fui pra casa chorando, porque não aguento mais”. A situação é muito grave. É um vírus muito contagioso. É uma situação de colapso mundial. Não é possível que as pessoas não consigam enxergar a gravidade. Está faltando comida, não tem verduras. Os mercados são abastecidos. Mas hoje (ontem) foi a primeira vez que comi alface depois de um mês e meio. Quando eu ia ao mercado, só comprava o que conseguia. Não tinha variedade. Carne, não tinha. Produtos de higiene também não. Todo mundo saiu pra comprar papel higiênico, sabonete líquido, produtos de higiene básica não tinha mais. Um colapso total.
E a situação dos idosos?
Um discurso que me marcou muito, foi do primeiro-ministro holandês, que falou que o que está acontecendo na Itália e na Espanha é uma questão cultural. Ou seja, nós, como latinos, damos muita importância às pessoas da terceira idade. Fiquei chocada. Ele falou que um doente que está em uma geriatria não seria levado a um hospital. No último discurso do presidente espanhol ao qual assisti no fim de semana, Sánchez falou que os espanhóis estão fazendo o que têm de fazer, segundo sua tradição: cuidando de seus ancestrais, das pessoas mais idosas e que isso é um dever que eles têm com seus familiares, avós e pais e que a Espanha vai continuar cuidando de seus velhos. Isso me marcou bastante.
A senhora viu também demonstrações de solidariedade?
As pessoas estavam muito solidárias, se ajudando, fazendo compras para os mais velhos. No meu prédio, uma velhinha escreveu e colocou na entrada do prédio: “Sou a vovó do apartamento tal, alguém por favor me faça as compras que não posso sair pra rua”. Havia muita gente se movimentando para fazer compras para os idosos, para quem estava pior do que eles. Os motoristas de táxi e Uber estão fazendo corridas de graça para médicos e para quem for doar sangue. Eu vi um país muito unido, muito coeso. A propaganda na TV dizia: “Juntos, vamos vencer”. Até me emociona falar, porque foi exatamente o que eu vi. O tempo inteiro eles falam: “Vamos conseguir, somos muito mais do que o vírus, então, fique em casa, fique em casa”. Eu gostaria, se pudesse pedir alguma coisa, se você pudesse terminar essa entrevista com essa frase: “Por favor, fique em casa”. Porque é uma situação muito triste. A Espanha tem 45 milhões de habitantes, e nós temos 200 milhões. Se tivermos mortos nessa proporção, não sei o que vamos fazer.