Embora diferentes em sua essência, a pandemia de coronavírus e os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 têm em comum a capacidade de provocar impacto estrutural global: no turismo, na indústria da aviação, nos mercados, no comportamento das pessoas e nas relações entre os países.
Há quase duas décadas, em um só dia, morreram 2.996 pessoas (incluindo os 19 sequestradores) nos Estados Unidos com jatos transformados em mísseis arremessados contra as torres do World Trade Center e o Pentágono. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), em quase quatro meses desde o surgimento da doença, na China, foram até agora 6.610 vítimas fatais do coronavírus — mais do que o dobro do que os atentados. O efeito retardado — primeiro na Ásia, depois na Europa, epicentro atual, e, agora migrando para a América — pode ser mais danoso do ponto de vista social e político que a tragédia daquela manhã de terça-feira nos Estados Unidos.
Excetue-se aqui teorias estapafúrdias de que a China fabricou o vírus, deixou morrer 3,2 mil cidadãos só para prejudicar a economia global. No 11 de setembro, elas também existiam, só que do lado americano. E nem se chamavam fake news ainda. Quem não lembra da teoria conspiratória que embasava o fato de familiares de Osama Bin Laden terem fugido do território americano horas antes dos atentados? Ou de um suposto complô entre a família Bush e o governo saudita?
Aos fatos: do ponto de vista geopolítico, a China deve ser o primeiro país a se recuperar da pandemia. A nação asiática lidou de forma não convencional com a crise, uma operação que talvez só seu híbrido capitalismo de Estado fosse capaz de exercer: confinamento de cidades como Wuhan. Não imagino um país democrático fazendo isso. Mas, embora não tenha sido adotada nas capitais europeias, a operação de confinamento é emulada no momento em que países fecharam fronteiras e a própria Europa se blinda.
Ainda em se tratando de Ásia é estranho o silêncio da Rússia sobre a doença. Enquanto o mundo prende a respiração, o presidente Vladimir Putin consegue aprovar, no parlamento, seu plano de se perpetuar no poder _ ao menos até 2036. Enquanto isso, o país registra, segundo dados oficiais da OMS, apenas 63 casos e nenhuma morte. É no mínimo suspeito.
A Europa só acordou para o vírus quando ele chegou à Itália, há duas semanas. Agora, a covid-19 testa todos os limites da União Europeia (UE) desnorteada pelo Brexit. No final de semana, nações decidiram interromper acessos entre países individualmente. Só nesta segunda-feira (16), de forma tardia, a UE age como bloco, fechando a fortaleza continental a estrangeiros.
A França de Emmanuel Macron deu mal exemplo ao realizar as eleições municipais em meio à epidemia no domingo. Angela Merkel, chanceler da Alemanha que sempre resistiu ao recrudescimento de fronteiras, foi voto vencido. O país começou a se fechar no domingo nos acessos nos Estados do Sul. O Reino Unido sob a égide do Brexit não é a Rússia, mas parece um reino de fantasia. Sua estratégia de combate é diferente da de outros países. Enquanto todos se fecham, o país de Boris Johnson defende a ideia de "gerenciar a disseminação" da doença para que a população ganhe imunidade. A estratégia é conhecida como "imunidade de grupo" ou "efeito rebanho", bastante questionável. De acordo com esse conceito, aqueles que estão em risco de infecção podem ser protegidos porque estão cercados por pessoas resistentes à doença.
Nos Estados Unidos, Donald Trump primeiro duvidou de dados científicos, culpou fake news e agiu tardiamente. Falou à nação pela primeira vez, na quarta-feira, como se estivesse lidando com um inimigo comum, não cerrou cidades, como a China, mas proibiu voos provenientes de parte da Europa, sem avisar aliados. Agora faz girar a potência para tentar frear os impactos sociais e principalmente econômicos. Em 2001 os ataques terroristas mobilizaram o país em clima de pavor e amalgamaram a nação e boa parte da comunidade internacional contra o inimigo comum, os talibãs e a Al-Qaeda. Vieram duas guerras, e descobrimos que a era do terror havia chegado para ficar.
Ainda que sob trauma, os EUA e o mundo voltaram a fazer turismo, os mercados se recuperaram até a nova crise, sete anos depois. Mas o sistema internacional jamais voltou a ser o mesmo. Viajar nunca mais foi igual, ninguém cruza uma fronteira com tranquilidade, apareceram os detectores de metais nos aeroportos, os scanner de corpos, a desconfiança. O mundo que irá nascer quando a crise passar vai depender da maneira como os governos e cidadãos responderem à ameaça.