Nos últimos anos, a pesquisadora brasileira Maíra Fedatto mergulhou na história e nos processos da Organização Mundial da Saúde (OMS) para entender como a entidade internacional com sede em Genebra (Suíça) relaciona-se com organizações não-estatais, como fundações filantrópicas, universidades, ONGs e o setor privado.
Jornalista formada pela PUCRS, mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UNB), Maíra trabalhou na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) na capital federal, período no qual pesquisou a cooperação Brasil-África na área da saúde. O estudo sobre a OMS é objeto de seu doutorado pela Universidade de São Paulo (USP) e Kings'College. De Londres, ela conversou com a coluna sobre a resposta da OMS à crise do coronavírus.
Como está a pressão sobre a OMS para declarar coronavírus uma pandemia?
A questão da pressão sobre a OMS está ligada a como essa informação será recebida pelo público. Quando se declara pandemia, você acende de novo um alerta, as pessoas começam a ficar desesperadas. Uma pandemia não tem a ver com letalidade (do vírus), está relacionada a como ele se espalha. De fato, é uma pandemia, porque o coronavírus já foi encontrado em 46 países. Só isso já faz dele uma pandemia. Mas o cuidado quando se usa nomes oficiais deve-se ao pânico que isso pode causar. É diferente de declarar emergência de saúde pública de importância internacional (atual status da OMS sobre a doença), porque essa é uma declaração com a qual a organização retira o tema dos limites dos governos, deixa de ser uma preocupação exclusiva do governo chinês para que seja fomentada uma resposta coordenada em nível internacional. Passa a haver toda uma comunicação entre especialistas do mundo inteiro, tendo a OMS no papel de liderança. A OMS passa a avisar a mídia diariamente, a fazer relatórios atualizados com número de mortes, de países afetados, e a dar recomendações. Isso é necessário a partir do momento que se tem uma emergência de importância internacional. O uso do termo pandemia é só uma questão de como a doença se espalha, o fato de não ser mais um surto local, de ser um vírus que se espalhou muito. É o caso do coronavírus, sem dúvida.
Quando se declara pandemia, você acende de novo um alerta, as pessoas começam a ficar desesperadas. Uma pandemia não tem a ver com letalidade (do vírus), está relacionada a como ele se espalha.
MAÍRA FEDATTO
Pesquisadora
O uso do termo pandemia, então, é apenas uma questão simbólica?
Nesse caso, sim. No caso da emergência pública de importância internacional, muda-se a forma de resposta. Por exemplo: na crise do ebola, a OMS demorou muito para declará-la. Nesse caso, deixa-se a liderança para os Estados, para os governos. É uma coisa muito interna. Quando houve o surto do ebola, o escritório regional da África já avisava Genebra de que a organização tinha de declarar (emergência). Mas, uma situação de emergência impacta o direito de ir e vir das pessoas, a economia, tudo. Então, tem-se muito cuidado. A linha é tênuec. No caso do H1N1, a OMS foi muito criticada por setores que diziam que ela declarou emergência porque tinha links com a indústria farmacêutica. Se declara muito cedo é um problema, se declara tarde é outro problema muito grande porque coloca a vida das pessoas em risco.
Na sua avaliação, a resposta da OMS até agora está adequada?
Achei adequada. A gente vê, agora, que os casos começaram a se espalhar pelo mundo. Apesar de a letalidade não ser muito alta, o coronavírus ainda é muito desconhecido. É necessário esforço grande de coordenação, de descobertas e prioridades a curto e longo prazos. O desconhecido provoca pânico. A declaração de emergência ocorreu no momento adequado, o vírus estava começando a sair da China. Provou ser uma doença que necessita de um esforço global. Por isso, está sendo contida. Atualmente, há mais casos novos fora da China do que dentro. A resposta focada na China está dando certo. O isolamento, apesar de ser uma medida muito forte, se provou bastante eficaz.
Como você compara a resposta da OMS ao coronavírus em relação a outras epidemias globais?
Há uma mudança no cargo de diretor-geral da OMS. A anterior, Margaret Chan, estava com a imagem bastante prejudicada, inclusive dentro da organização. Ela ficou 10 anos no cargo. Com Tedros Ghebreyesus, a gente vê uma resposta melhor, com a organização produzindo relatórios diários, sendo muito ativa em redes sociais, manifestando-se várias vezes ao dia, montando uma equipe para combater fake news. Está sendo uma resposta muito positiva.
Em momentos de epidemia, a população brasileira deve entender a importância do SUS, de se ter um sistema único de saúde acessível para todos. É isso que contém epidemia.
MAÍRA FEDATTO
Pesquisadora
Que avaliação você faz da atuação de Tedros como diretor-geral?
Margaret saiu com a imagem desgastada porque a própria organização estava desgastada. A OMS está se reinventando, é uma agência de 1948, em um período pós-Segunda Guerra Mundial, criada como agência especializada das Nações Unidas. O mundo mudou de 1948 para cá. Hoje, a entidade tem um papel mais normativo. Com a questão do ebola e do H1N1, a OMS foi muito criticada, e quem toma a frente é o diretor-geral. No caso dos novos atores, eles investem muito em saúde, Bill & Melina Gates Foundation, por exemplo, é hoje é um ator poderosíssimo dentro da saúde global, que consegue estabelecer prioridades. Mas é uma prioridade de mercado, rentável. É sempre uma aproximação bastante tecnológica, de vacina, de desenvolvimento. Não tem uma aproximação com foco na prevenção, em acesso universal à saúde, que era a ideia da OMS quando em 2000, com o slogan "Health for all" (saúde para todos). Tedros, internamente, é visto como um diretor muito aberto para essa mudança.
Como haver colaboração transnacional no momento em que a OMS está em crise financeira e de legitimidade e alguns governos pregam maior isolamento?
No caso do Brasil, apesar de um momento conservador, existe a Fiocruz, que consegue manter sua independência como unidade de excelência. Em momentos de epidemia, a população brasileira deve entender a importância do SUS, de se ter um sistema único de saúde acessível para todos. É isso que contém epidemia. O Reino Unido é considerado o primeiro país em habilidade para conter epidemias. Isso porque é baseado no NHS (National Health Service), um sistema de acesso universal. O pronunciamento do ministro da Saúde (Luiz Henrique Mandetta) foi muito responsável. Em tempos de crise, a gente precisa ter uma responsabilidade coletiva. Na questão de colaboração, estamos vendo um mundo bastante articulado. Quando se tem uma epidemia, a articulação é em pesquisa. São pessoas que estão trocando informação, e a academia ainda é muito independente (de governos).
Como o Reino Unido está elaborando a contenção ao vírus?
No Reino Unido há muita imprensa sensacionalista. Você está no metrô e vê esses jornais com manchetes como a corrida às máscaras. Acaba causando um problema. As pessoas ficam em pânico, e vai todo mundo comprar uma máscara e quem precisa fica sem. As pessoas deveriam estar mais preocupadas com higiene, em entrar no metrô e evitar colocar a mão no corrimão. Caso contrário, acaba prejudicando quem realmente precisa daquele equipamento. A comunicação responsável é muito importante, caso contrário acaba prejudicando a resposta.
Você percebe xenofobia em relação a chineses?
Meu departamento no King's College é junto ao China Institute. A gente divide a sala com os chineses. Ao meu redor, não percebo. Mas casos de xenofobia tem sido bastante noticiados. Vê-se muito em redes sociais. Os chineses já são um grupo com histórico de marginalização. Esse foi um dos motivos pelos quais a OMS deu o nome (covid-19) para a doença rapidamente. Para não estigmatizar.
Para evitar que a doença passasse a ser chamada pela questão geográfica, referindo-se à China ou a asiáticos?
Exato, há um estigma muito forte e não se consegue tirar. O HIV surgiu na década de 1980. Estamos em 2020, e ainda é uma doença extremamente estigmatizada. Durante a crise do ebola, houve universidades nos EUA que barraram inscrições de estudantes da África Central. Há marginalização de populações. Além de ter um problema de saúde, passa-se a ter um problema de direitos humanos.