Primeiro país a viver a chamada Primavera Árabe, a Tunísia é também o único país árabe que completou o ciclo completo, da revolução que derrubou uma ditadura até a consolidação de instituições democráticas.
Ex-colônia francesa no norte da África, entre a Líbia e a Argélia, o país experimentou os ventos liberalizantes das rebeliões iniciadas em 2011, mas não acabou como seus vizinhos, ensanguentados em guerras civis, como a Líbia, ou assistindo ao retorno do autoritarismo, como no Egito. No último dia 15, os tunisianos deram mais uma prova de que sua jovem democracia caminha para o amadurecimento: realizaram o primeiro turno da eleição presidencial sem sobressaltos — e com debates televisionados pela primeira vez no mundo árabe.
Apesar disso, o país enfrenta múltiplos desafios à sua estabilidade: em junho de 2015, um terrorista abriu fogo em uma praia, em Sousse, causando a morte de 39 pessoas, a maioria turistas. Antes, em março, militantes em aliança com o grupo Estado Islâmico atacaram o museu do Bardo, em Túnis, matando 20 turistas estrangeiros.
— As cidades e praias estão muito seguras. A prova disso é que, de janeiro a junho, recebemos mais de 6,5 milhões de turistas — avalia o embaixador da Tunísia no Brasil, Mohamed Hedi Soltani, em visita ao Estado na semana passada.
Com a mesma população do Rio Grande do Sul — 11 milhões de habitantes, o país importa do Brasil soja, café e açúcar, e exporta azeite de oliva e fertilizantes.
No Estado, o embaixador buscou expandir as relações comerciais com o Estado. Visitou o governador Eduardo Leite e o prefeito da Capital, Nelson Marchezan. Também esteve na Farsul, Federasul e Fiergs, universidades e veículos de comunicação, entre eles o Grupo RBS. Antes de retornar a Brasília, concedeu a seguinte entrevista à coluna.
Tunísia é a única democracia que emergiu da Primavera Árabe. Vocês se consideram exemplo para a região?
Cada país tem sua própria experiência. A experiência tunisiana não pode ser exportada. É única e pertence aos tunisianos. Se outros quiserem tomar essa experiência como exemplo é positivo. Pessoas querem liberdade, democracia. Não podemos sugerir a alguém que imite nossas experiências. Hoje, todos estão vendo o que está acontecendo na Tunísia. Na semana passada, tivemos eleições. Se alguém quiser seguir nossa experiência, ok. Mas não sugerimos a ninguém que nos siga. Foi uma experiência típica dos tunisianos, mas culturas são diferentes.
A Tunísia foi da revolução à democracia sem guerra e de forma muito rápida. Como foi possível?
Muito rápido. A Tunísia tem uma população educada, uma sociedade civil muito forte, uma cultura de direitos humanos e democracia impregnada nas pessoas. Quase 98% da população é alfabetizada. Acho que isso (o caminho para a democracia) é um resultado normal, estávamos atrasados. As pessoas estavam prontas para isso.
A Tunísia está olhando para frente. (A ditadura) É uma página que tem de ser virada.
MOHAMED HEDI SOLTANI
Embaixador da Tunísia
O ditador Ben Ali, derrubado pela Primavera Árabe, morreu no último dia 19 no exílio na Arábia Saudita. O que ele representava para as pessoas hoje em dia?
Depende para quem. Para os jovens que vieram depois da revolução, não sabem quem é. Não representa nada. A Tunísia está olhando para frente. (A ditadura) É uma página que tem de ser virada. Hoje, a Tunísia é um país democrático. Temos de olhar para nossa economia. Não temos de chorar pelo passado. Acabou, temos de nos mover para frente. Para o nosso próprio benefício.
Vocês estão no meio do segundo turno entre Kais Saied, um jurista, e o empresário da mídia Nabil Karui, que está na prisão. Ambos são candidatos que se colocam como outsiders, de fora do establishment da política. A exemplo de países ocidentais, há uma rejeição a políticos tradicionais?
Não acho que eles não sejam políticos profissionais. São profissionais. Mas sabem como falar com as pessoas diretamente. Acho que os jovens que votaram neles desejam que algo mude. Talvez queiram algo novo, novos políticos, novas figuras. Eles querem mudança. Há muitos desafios sociais e econômicos. Temos de enfrentá-los. Temos um índice de desemprego de 15%.
Essas eleições foram uma espécie de teste para a democracia tunisiana?
Foram um teste, colocaram à prova a democracia, claro. Acho que ela agora está forte. Essas eleições foram justas, é um novo passo para nossa democracia. Nossa democracia é nova. É bom o que acontecendo. Nossa democracia não recuará.
Em relação ao Brasil, como estão as relações com o governo de Jair Bolsonaro?
Continuam excelentes. Politicamente, não há mudança. O Brasil é nosso país amigo, nos apoiou várias vezes. A Tunísia foi eleita membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU para o biênio 2020-2021. O Brasil nos apoiou, assim como no biênio 2021-2022, daremos nosso apoio a vocês. Estamos buscando aumentar o comércio, precisamos de mais trocas. Estou aqui em busca disso, de investimentos. O Brasil deve investir na Tunísia.
Em que áreas o senhor acredita que o Brasil pode investir na Tunísia?
A Tunísia tem um mercado aberto. Vocês podem investir em tecnologia, transporte, agronegócios. Todos os campos estão abertos. Hoje, temos apenas uma empresa brasileira grande na Tunísia, a Vale. É grande, gera empregos, mas não é suficiente.
Falamos sobre paz. Há muitas resoluções (da ONU), temos de respeitá-las. Jerusalém Leste, para nós, é palestina. Essa é nossa posição.
MOHAMED HEDI SOLTANI
Embaixador da Tunísia
O senhor afirma que as relações entre Brasil e Tunísia estão excelentes, mas, de forma geral, os árabes não viram com bons olhos a ideia da transferência da embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém, em Israel. Essa é uma questão para vocês?
Nunca comentaremos isso. Falamos sobre paz. Há muitas resoluções (da ONU), temos de respeitá-las. Jerusalém Leste, para nós, é palestina. Essa é nossa posição. Não mudou. Se alguém der esse passo, será contra a resolução da ONU. É uma decisão das Nações Unidas, se você der este passo estará violando isso. O Brasil, desde 1947, mantém sua posição. Não acredito que irá mudar.
Até porque, para Brasil, os negócios com os árabes são importantes.
Muito importantes. Dias atrás, a ministra Tereza Cristina (da Agricultura) esteve no Egito, no Kuwait, no Catar, na Arábia Saudita, para fazer negócios. É muito importante. Foi organizado um jantar também com embaixadores árabes e muçulmanos. Bolsonaro estava lá. Não precisamos nada que cause danos a essa boa relação.
Como vocês estão vendo as tensões entre Arábia Saudita e Irã?
Não interferimos em assuntos internos dos países. Mas nossa posição vai sempre no sentido de que as partes conversem. Se você quer solucionar um problema, precisa conversar: diplomacia. Somos contrários a guerras. Dias atrás, a Arábia Saudita foi atacada. Sempre pedimos paz, que as pessoas estejam juntas e conversem. Sem guerra, mas não interferimos em assuntos internos.
Como está a segurança na Tunísia hoje, depois dos atentados na praia de Sousse e no museu de Túnis, em 2015?
Hoje, a Tunísia é um dos lugares mais seguros, mais até do que muitos países europeus. Mas você sabe, esses terroristas podem atacar em qualquer lugar.
Os terroristas que eventualmente ameaçam o país vêm de fora ou é uma ameaça interna?Alguns são da Tunísia, às vezes vêm da Argélia. Temos uma longa fronteira com a Argélia e com a Líbia, que não se conseguia controlar completamente até aquele momento. Hoje, controlamos todas as fronteiras. Algumas vezes, nós os atacamos. As cidades e praias estão muito seguras. Prova disso é que, de janeiro a junho recebemos mais de 6,5 milhões de turistas. Esperamos até 10 milhões este ano. Os turistas estão voltando. Estão se sentindo seguros.
Como foram esses dias em Porto Alegre?
Foi minha primeira visita e fiquei surpreso. Todos querem trabalhar com a Tunísia. Há potencial para negócios, mas temos de trabalhar duro. Importamos do Rio Grande do Sul soja, gado em pé e congelado e tabaco. Da Tunísia para o Sul, exportamos fertilizantes, azeite de oliva, tâmaras e componentes para veículos. O volume precisa ser elevado, não é suficiente. Há mais potencial para trocas, inclusive intercâmbio de estudantes universitários, que hoje não temos. Podemos fazer mais e melhor.