Os inimigos contavam os dias para observar, de camarote, Cristina Kirchner constrangida, caminhando a passos rápidos pela Avenida Comodoro Py, em Buenos Aires, desviando de fotógrafos para entrar no tribunal, na terça-feira. Não foi o que viram. Cristina abriu a porta do carro com tranquilidade, estava descontraída e com aquele sorrisinho nos lábios de quem conseguiu uma pequena vitória.
Cristina conseguiu desviar o foco do início de seu julgamento por corrupção envolvendo propina para favorecer empreiteiras na província de Santa Cruz, na época de seu governo. Para esvaziar midiaticamente a audiência, houve várias manobras de bastidores — como pedir a seus seguidores que não fossem até a sede da corte — e uma jogada de mestre. No sábado, quando todos esperavam que ela anunciasse sua candidatura à presidência, ela veio a público ungir Alberto Fernández. Ela irá de vice nas eleições de outubro.
Foi um passo atrás para dar dois à frente. Conheço Fernández desde 2001, em minha primeira cobertura eleitoral na Argentina. Entre os assessores, ele era o contato mais próximo de Néstor Kirchner para entrevistas com o candidato. Sempre atuou nos bastidores, nunca gostou da fama. Enquanto o casal K vinha da gélida e distante Santa Cruz, ainda tateando na política da capital, Fernández circulava com facilidade entre a Casa Rosada, suas sucessivas crises, e o Congresso. Ele foi crescendo nas fileiras peronistas, chegando a chefe de Gabinete de Néstor, entre 2003 e 2007, e de Cristina em parte do primeiro mandato, entre 2007 e 2011. Ao longo dos anos, os dois se afastaram, mas, como raposas políticas que são, resolveram se reaproximar de olho na sucessão.
Fernández é a antítese de Cristina - é calmo, avesso a holofotes e tem vocação para o diálogo — habilidade que a ex-presidente não faz questão de exercitar. Fundado pelo general Juan Domingo Perón, o Partido Justicialista é um saco de gatos de facções que, em geral, favorece os adversários. Moderado, Fernández é bem visto por diferentes setores internos do peronismo, o que pode favorecer uma inédita união interna. Com a guinada ao centro, a chapa também atrai eleitores que votariam contra Mauricio Macri, mas não gostam de Cristina.
A ex-presidente recua no momento em que os principais institutos de pesquisa argentinos lhe davam até nove pontos à frente em eventual segundo turno entre ela e Macri. Ambos têm alto grau de rejeição — algo que não acontece com Fernández. No momento em que Argentina está em grave crise econômica, com inflação galopante — na próxima quarta-feira, 29, está prevista nova greve geral —, Macri perde a rival direta, a inimiga a ser combatida. Em seu movimento, o Cambiemos, começa a ser pressionado a abrir mão da candidatura em prol da governadora da província de Buenos Aires, María Eugenia Vidal.
Cristina volta ao banco dos réus na próxima segunda-feira, 27. Dos 10 processos de corrupção que pesam sobre ela, em cinco já há prisão preventiva decretada. As decisões só não se cumprem porque ela tem foro privilegiado por ser senadora. Fernández e Cristina pretendem participar das chamadas Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso), em 11 de agosto. E se até lá o Congresso caçar a imunidade parlamentar de Cristina? Bem, aí tudo muda de novo. Como é comum na Argentina.