O que é real, o que é fake, o que é política e o que é entretenimento no mundo da pós-verdade da atual Casa Branca?
No campo do real e da política, Donald Trump fez um discurso sobre o Estado da União à altura do cargo — foi mais moderado, menos belicista do que de costume, sem deixar de lado o patriotismo, que, se para nós, soa exacerbado, é música para os ouvidos de seus eleitores brancos, interioranos e cristãos. Perante as duas Casas do Congresso, na terça-feira, discursou como estadista: foi ponderado, evitou o improviso, seguiu o script e, pode-se dizer, foi até aberto ao diálogo ao propor um plano de migração que, embora conte com o muro na fronteira com o México, ao menos exclui a deportação dos chamados dreamers, milhões de jovens que chegaram aos EUA quando crianças pelas mãos de seus pais. Aplausos para Trump.
É no campo do que é fake e do que é entretenimento — fofoca até — que as coisas se misturam. Aos fatos: nos últimos dias, Melania, a primeira-dama, andava afastada dos holofotes. Não viajou com o marido para Davos, na Suíça, e estava evitando aparecer em público. Na terça-feira, quando a comitiva presidencial deixou a Casa Branca em direção ao Capitólio, um trajeto de menos de 10 minutos pela Avenida Pensilvânia, algo havia de diferente no ritual acompanhado por milhões de americanos pela TV: Trump foi na limusine presidencial. Melania, em outro carro.
O gelo da primeira-dama começou quando o The Wall Street Journal publicou que um advogado de Trump teria pago US$ 130 mil à atriz pornô Stephanie Clifford (nome artístico de Stormy Daniels), para que ela silenciasse sobre um encontro, em 2006, com o milionário, quando ele já era casado com a atual mulher. O pagamento teria ocorrido um mês antes da eleição. Não se sabe se Trump tinha ou não conhecimento da negociação.
Horas antes de o presidente falar no Capitólio, na terça, Stephanie lançou um comunicado no qual negou o affair: "Não por propina, mas porque nunca aconteceu". Em 2011, ela havia dado uma entrevista à revista InTouch dizendo exatamente o contrário. Dava detalhes do relacionamento.
A quem interessa as puladas de cerca de Trump senão às revistas de fofoca e a um público ávido por consumi-las? Respondo: a toda a população. Nos EUA, a imagem ilibada do comandante em chefe se confunde com o imaginário de pátria, família e sociedade americana — branca, cristã e bem-sucedida. John Kennedy era "um mulherengo compulsivo", nas palavras do biógrafo Robert Dalleck. Não perdeu o mandato, foi assassinado e até hoje é idolatrado pelos democratas. Com Bill Clinton foi diferente: sofreu um processo de impeachment, foi obrigado admitir na TV "uma relação imprópria" com a ex-estagiária Monica Lewinski. Quase renunciou, mas sobreviveu. Qual das narrativas será a de Trump, um presidente emergente do show business, mas ainda, com o perdão do trocadilho, um aprendiz em Washington — onde não só o presente e futuro importam, mas principalmente onde, volta e meia, esqueletos pulam dos armários do passado?