Um dos principais especialistas na relação Rússia e América Latina, o professor Vladimir Rouvinski, diretor do Laboratório de Política e Relações Internacionais da Universidade Iceis, da Colombia, avalia que o recuo dos Estados Unidos na reaproximação com Cuba, anunciado pelo presidente Donald Trump recentemente, pode favorecer os interesses de Vladimir Putin na ilha de Raúl Castro.
Em entrevista a ZH, por telefone, ele analisa a democracia no gigante asiático, o centralismo de Putin e a influência do Kremlin em nações que pertenciam à esfera soviética. Leia os principais trechos:
O governo russo é extremamente autoritário, no entanto não pode ser caracterizado como ditadura. Ao mesmo tempo, não é uma democracia. Como classificar o sistema político da Rússia hoje?
Efetivamente, no caso da Rússia, não temos um governo no modelo de uma democracia liberal. Como sou cientista política, temos nomes, etiquetas para falar desses regimes. Para alguns, é uma espécie de teatro, uma autocracia eleitoral. Em outras palavras, sim ocorrem eleições, mas são puro teatro, porque a oposição não tem possibilidade de vencê-las. Para outros, trata-se de uma democracia não liberal. Porque tampouco é um regime autoritário, como em Cuba ou Coréia do Norte, porque as pessoas tem muitas liberdades, como os cidadãos em outros países. Mas sua participação na política é muito limitada. E o poder tem se mantido nos últimos 17 anos nas mãos de um grupo de pessoas, elites, muitas das quais oriundas do setor da polícia, do complexo militar industrial, da procuradoria. E essas pessoas fazem todo o possível para manter esse poder.
A que se deve o apoio em massa da população a Putin e a esse sistema centralizado?
Quando termina a URSS, em 1991, a Rússia começa o processo de transformação política. Estão sendo criadas instiruições (a exemplo) da democracia liberal. Há partidos políticos, as coisas estão começando a funcionar, muito parecido com o modelo que existe no Brasil, na Europa ocidental e em outros países da America latina. No entanto, a economia russa vai muito mal, o país se encontra em um momento de mudança dramática, de um sistema de economia socialista planificada a um sistema capitalista de mercado. Por essa razão, muitas pessoas perdem as poucas coisas que tinham asseguradas durante o regime soviético e começam a enfrentar dificuldades, que elas não conheciam antes: mercado livre, necessidade de procurar emprego, sem garantias de ter salário mínimo. Estão vendo processos de privatização dos bens que antes pertenciam ao Estado. Isso permite a Vladimir Putin e aos demais líderes das elites a pintar a democracia liberal como um quadro muito negativo. Por isso, muita gente hoje em dia apoia o sistema politico na Rússia, porque o que eles conhecem da democracia liberal está muito fortemente associado à década de 1990, quando sofreram muito. O nível de vida dessas pessoas sob o regime, que não é democrático, é melhor do que o que existia na década de 1990, quando havia democracia. E também observamos hoje que a maioria das pessoas que participa dos protestos é formada por jovens, estudantes de últimos graus dos colégios, universitários, que não têm essa memória que outras gerações mais antigas têm sobre o que significa viver sob regime democrático na década de 1990.
A década de 1990 foi o único período democrático na Rússia?
Efetivamente, sim. É muito difícil dizer que era uma democracia, mas, em um período muito curto, depois da revolução de fevereiro de 1917,com a queda do regime czarista, chega ao poder o primeiro governo democrático, mas não havia Constituição dessa nova Rússia. O país se encontra em meio à I Guerra Mundial, as coisas estão muito limitadas. Mas é interessante que, quando ocorre a revolução de outubro, quando os bolcheviques chegam ao poder, eles cumprem com alguns aspectos da democracia, realizam as eleições, há uma Assembleia constituinte. Mas perdem as eleições, e é quando se acaba tudo: janeiro de 1918. A grosso modo, dizemos que o único período em que os russos experimentaram realmente a democracia estilo ocidental, liberal, foi entre 1992 e 2000.
O visual e as atitudes de Putin contribuem para esse mistério em torno da Rússia?
(Risos) Ele é um antigo espião, é da sua natureza. Mas é muito certo o você diz. Realmente, sua formação como uma pessoa de uma das agências mais obscuras de segurança que existiram, a KGB, tem muito impacto na forma como ele vê as coisas. Em muitas entrevistas, ele diz que não confia nas pessoas. E não pode. Sempre está muito desconfiado, porque lhe ensinaram que não se pode confiar nas pessoas, aprendeu que sempre se deve esperar que alguém irá mentir. Não é tanto se gosta ou não do poder, mas a forma como ele e as demais elites estão preocuados com a possibilidade de uma mudança de regime. Porque diante da mudança de regime, se Putin perde o poder, também os grupos de interesse, os amigos de Putin que comandam a economia russa, podem perder tudo o que têm.
Putin quer resgatar a influência que tinha na esfera soviética? Ele recuperou a autoestima dos russos?
Eles estão muito preocupados com o que, na Russia, chama-se o "estrangeiro próximo". Para os russos, os estrangeiro próximos são as antigas repúblicas soviéticas. Putin e as elites estão convencidos de que eles têm de controlar tudo o que está acontecendo nessas zonas, porque, se isso não acontecer, será uma ameaça às elites. O que aconteceu na Ucrânia foi um pesadelo para Putin porque um regime muito parecido com o que existe na Rússia caiu, como consequências de um movimento popular. E ele não pode permitir que isso ocorra na Rússia. Por isso, qualquer coisa que façam os EUA, ou que Putin perceba que os EUA estão fazendo, nessas zonas próximas, é considerado uma ameaça a seu poder.
É uma medida de proteção, então? Não para ampliar influencia?
Não, a preocupação central tem a ver com a tarefa de manter o poder na Rússia. Isso é o mais importante. O esfriamento das relações enter EUA e Cuba pode abrir caminho para a Rússia na ilha?Putin fez pronunciamentos apoiando Cuba. Os russos estão dispostos a facilitar algumas coisas para Cuba, como agora a venda de petróleo, o perdão da dívida externa, para poder regressar (à ilha). Por outro lado, Cuba é um bom tema para Putin para dizer que a Russia está de novo grande, sua presença ajuda a mostrar a grandeza de Russia para Putin aos olhos dos russos.
E no restante da América Latina, Putin tem interesse? No Brasil, por exemplo.
Claro! A presença russa na America Latina, tão longe da Rússia, mas tão perto dos EUA, é uma amostra do restabelecimento do poder russo. Não necessariamente em termos militares, porque acredito que o governo de Putin não conta com os mesmos recursos que tinha a URSS e não está disposto a gastar esses recursos. Faz coisas pequenas, mas simbolicamente muito importantes. Quer vender aos russos no mercado doméstico algo como: "Vejam, nós outra vez somos grandes, temos a possibilidade outra vez inclusive de alcançar tão longe". Por outro lado, creio que também empresas russas, se tiverem oportunidades, não irão perder. Estão olhando possibilidades.
E o que Putin planeja para a Síria?
Não estou certo se existia, no principio, quando a Rússia entrou na Síria, se existia uma estratégia a longo prazo. Hoje em dia, muitos esqueceram de que, quando Putin mandou os aviões russos para a Síria, era um momento critico. Depois de anexar a península da Crimeia, a Russia estava isolada, ninguém queria falar com Putin. Em uma reunião na Austrália, Putin estava sentado sozinho, no café da manhã. Ninguém queria ficar perto dele. E saiu antes do fim do encontro. Foi uma humilhação. Era impossível para os russos romper esse isolamento. A entrada dos aviões na Síria se deu uma semana depois da assembleia-geral das Nações Unidas em Nova York, em que Obama disse que não iria se reunir com Putin. E depois disso, Obama se viu forçado e teve de falar por duas horas ou mais com Putin porque já era impossível ignorar o que havia acontecido na Síria. Creio que foi a primeira tentativa para que aliados voltassem a falar com Putin. Mas, agora, creio que a situação é muito mais complexa e há varias estratégias que os russos estão usando. E temos um novo morador na Casa Branca, que é muito imprevisível.