Ouça a coluna de Rodrigo Lopes
- As crianças não paravam de chorar. Nós lhes damos medicação e tratamento. E, quando acordam, choram.
O desabafo à rede americana ABC é do doutor Mizar Hassani, médico de um hospital perto de uma cidade que provavelmente você nunca ouviu falar - e, confesso, nem eu, que já estive na Síria e acompanho o noticiário internacional. Trata-se de Khan Sheikhoun, na província de Idlib.
Os moradores dessa cidadezinha entraram para o hall da infâmia da humanidade esta semana, ao lado de vilarejos do Vietnã, nos anos 1960, ou de remotas vilas curdas, como Halabja, em 1988. Na terça-feira, acordaram com aviões sobrevoando suas casas, lançando sobre seus telhados um gás estranho. Sem entender o que era aquilo, de repente, os moradores sofriam desmaios, vômitos. E experimentavam uma das piores mortes: quando falta o ar.
Outro médico de Khan Sheikhoun, Abdulhai Tennari, disse o seguinte:
- Algumas crianças já chegaram mortas. Elas foram encontradas sob os escombros. Muitas que sobreviveram não têm mais os pais. Não sabemos onde seus pais estão. Estamos procurando por eles. E os pais podem estar procurando pelos filhos.
Hassani e Tennari foram os primeiros a olhar nos olhos das crianças vítimas do ataque químico de terça. Quem teve estômago para assistir aos vídeos que povoam as redes sociais desde então, certamente terá poucos motivos para continuar acreditando na humanidade. Em uma das sequências de imagens, crianças lutam para respirar, algumas estão quase inconscientes, com narizes escorrendo e pupilas contraídas. Em outra cena, os socorristas jogam água no rosto das pessoas e pelo menos dois homens aparecem com espuma branca ao redor da boca.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou que vítimas apresentam sintomas de exposição a agentes neurotóxicos. Alguns casos, a produtos organofosforados (grupo de químicos usados como pesticidas artificiais). Os EUA dizem que as mortes foram provocadas por gás sarin, composto organofosforado e agente neurotóxico - ao contrário do gás cloro e do agente mostarda, que, acredita-se, foram usados em ataques passados na Síria. Em 1995, a seita Aum Shinrikyo usou gás sarin no metrô de Tóquio.
Essas armas são proibidas pela legislação internacional porque tratam-se de uma barbaridade intolerável. Mas o fato é que não adianta apenas proibi-las, pouco resolve o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, dizer que o ataque foi um "crime de guerra", ou Donald Trump afirmar que Bashar al-Assad "cruzou muitas linhas". Com todo respeito, também não muda nada o papa Francisco classificar a ação de "massacre inaceitável". Nem este texto meu resolve, tenho consciência disso.
Mas algo precisa ser dito. Não é possível ficarmos passivos diante das cenas de Khan Sheikhoun. Tampouco não resolve apontarmos o dedo para o regime do ditador Bashar al-Assad ou para os rebeldes ou para o Estado Islâmico. Todas as partes envolvidas no conflito sírio usam ou usaram em algum momento agentes tóxicos. Nada impede a produção, armazenamento ou transferência de armas. Nada impediu que a pele de crianças vietnamitas fossem queimadas pelo napalm americano. Nada impediu que as crianças curdas fossem mortas com gás mostarda por Saddam Hussein. Nada impediu que as crianças de Khan Sheikhoun chorassem porque acordaram e não conseguiam respirar.