O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; (...) Paulo Mendes Campos (O amor acaba)
Das cinzas da II Guerra Mundial, emergiu o sonho: pensávamos que viajaríamos para a Europa e, uma vez passada a sempre tensa imigração do aeroporto, percorreríamos o velho continente, de país em país, de trem ou avião, sem apresentar passaportes ou vistos. Embora com idiomas diferentes, a moeda era a mesma. Nada de levar na carteira dólares para trocar por marcos ou francos. Esse era, na prática, o principal efeito da integração europeia em nossos dias como turistas.
Do ponto de vista político, a formação do bloco econômico, na segunda metade do século 20, nos dava uma certa sensação de que, uma vez tão intimamente conectados, horrores como Dresden, Berlim ou Guernica, algumas das cidades que se tornaram símbolos do que o ser humano tem de pior, nunca mais se repetiriam. Quanto mais unidos, menos provável seria a guerra.
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Ora... Como éramos inocentes. Sabemos que, nem em nossas vidas pessoais, a intimidade garante a paz dentro de casa. Casamentos acabam em cartórios frios ou em salas de audiência de gélidos tribunais, em cenas que nem de longe lembram o calor do início do namoro ou as juras de "até que a morte os separe" das igrejas.
O Reino Unido, como um cônjuge que há anos se incomoda com a toalha molhada deixada pelo parceiro sobre a cama, via no divórcio algo inevitável. A verdade é que, desconfiados, os britânicos nunca se entregaram completamente à União Europeia. Não estavam entre os seis primeiros signatários do Tratado de Roma, de 1957 e que agora aniversaria. Também só aderiram à Comunidade Econômica Europeia em 1973. À época, foi feito um referendo semelhante ao de 2016. A integração foi aprovada por 67% dos eleitores. O país sofria com o declínio industrial, inflação e greves.
Mesmo assim, os britânicos nunca se identificaram com a União Europeia, como alemães e franceses o fizeram: não aderiram ao euro, mantendo sua poderosa libra esterlina, e tampouco assinaram o Tratado Schengen, que permite a livre circulação de pessoas além das fronteiras nacionais (essa coisa que nós, turistas, tanto adoramos na Europa). Ou seja, diferentemente do sonho do início desse texto, para entrar no Reino Unido é preciso apresentar passaporte, mesmo já estando na Europa.
Para os críticos, a União Europeia cresceu demasiadamente nas últimas décadas, exercendo cada vez mais controle sobre a vida comezinha dos britânicos. A defesa da soberania nacional, o orgulho pela identidade britânica, prevaleceram. Mais recentemente pesaram a desconfiança em relação à burocracia de Bruxelas, sede da UE, afinal, o país não vive mais aquela crise dos anos 1970. Pelo contrário. O controle de fronteiras, com a onda de refugiados, e questões de segurança interna e externa, em meio a cada vez mais frequentes atentados terroristas, foram a pá de cal.
Ao acionar o artigo 50 do Tratado de Lisboa, nesta quarta-feira, começa a contagem regressiva. Serão dois anos de negociações até o desligamento dos aparelhos. Um dos pontos que mais preocupa os cidadãos comuns - inclusive brasileiros com cidadania de países europeus - é como fica a situação des mais de 3 milhões de pessoas que moram, trabalham e estudam no Reino Unido.
Há direitos a preservar. Mas, na prática, o que acontece daqui pra frente é que as autoridades britânicas os verão como estrangeiros de fato e, agora, de direito. Do ponto de vista econômico, é mais complexo: o Reino Unido tem uma conta a pagar, assumiu compromissos como membro do bloco.
Há quem fale em 50 a 60 milhões de euros o preço da saída, quase como uma pensão a ser paga. De uma só vez? Não se sabe. Até nesse ponto a metáfora do divórcio cabe perfeitamente. Será litigioso ou pacífico. Para o mundo, é melhor que a segunda opção seja a escolhida.