Fevereiro de 2011, fronteira entre Tunísia e Líbia. Na “terra de ninguém”, como é conhecida a área normalmente suja e fétida entre um e outro posto de imigração, observei uns 15 homens, de várias idades, desembarcarem de caminhonetes e vans no meio do deserto. Atrás deles, naquele local onde você já não está mais em um país, mas ainda não chegou a outro, havia um cartaz gigantesco com a foto desfigurada do ditador líbio Muamar Kadafi. Alguns daqueles homens usavam turbantes, outros vestiam roupas ocidentais, tênis Nike e jaqueta de couro. Integravam o que o mundo chamava à época, com alguma generalização, de “rebeldes”. Alguns eram estudantes universitários, outros, médicos, advogados, comerciantes que, do dia para a noite, pegaram em armas para derrubar a ditadura líbia. Nunca foram soldados profissionais. Naquele meio de manhã de fevereiro, ficaram sabendo, por meio de troca de mensagens pelo Facebook, que um grupo de jornalistas, entre eles repórteres do The New York Times, da Associated Press, da CNN e eu, de Zero Hora, encontravam-se na fronteira, esperando para serem levados até Nalut, uma das primeiras cidades libertadas no oeste do país. Sim, o Facebook era o principal meio de comunicação daqueles rebeldes.Seria exagero dizer que os regimes de Zine el Abidine Ben Ali, na Tunísia, de Hosni Mubarak, no Egito, de Kadafi, na Líbia, ruíram apenas por causa das redes sociais, mas foram elas o combustível do início da chamada Primavera Árabe. Por Facebook e Twitter – o WhatsApp engatinhava –, aquelas pessoas se tornaram manifestantes e rebeldes. Organizavam-se, convocavam mobilizações na Praça Tahrir e em Benghazi, avisavam a população civil sobre a chegada de inimigos – e, também, sobre a presença de jornalistas na área. Não a toa uma das primeiras atitudes de Kadafi ao ver a revolução se agigantar fora cortar a internet na maior parte do país. Na fronteira onde eu estava, havia rede até uns 15 quilômetros dentro da Líbia. O que tem a ver aqueles rebeldes com as pessoas que inventam notícias falsas e utilizam as redes sociais para turbiná-las, como aconteceu no caso do Facebook na eleição de Donald Trump? Tudo. Mentiras existem desde sempre, antes até da invenção da imprensa, há mais de 500 anos. As redes sociais só as propagam de maneira ainda mais veloz. Como se sabe, a tecnologia não é boa ou ruim em si. O avião que voa para levar um órgão a alguém que precisa de um transplante é o mesmo que lança um míssil. Redes sociais que contribuíram para derrubar crápulas que há 40 anos subjugavam suas populações são as mesmas que turbinam desinformação e mentiras ou jogam na lama reputações. Em uma guerra, uma informação falsa pode conduzir uma população desesperada, pensando estar fugindo para a liberdade, até uma zona em que será massacrada. Em tempos de paz, notícias falsas podem ajudar a fazer o mesmo com a democracia.
Desinformação
Sobre ditadores, redes sociais e notícias falsas
Mentiras existem desde sempre, antes até da invenção da imprensa, há 500 anos. As redes sociais só as propagam de maneira ainda mais veloz
Rodrigo Lopes
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