Pode-se dizer que quem conheceu Cuba antes da morte de Fidel esteve em um país que deixou de existir pontualmente às 22h29min de sexta-feira. Há muito já não era a Cuba da Revolução, mas o espectro de Fidel pairava sobre a ilha, mesmo que o ex-presidente só aparecesse de vez em quando, em uma que outra foto na capa do jornal Granma, de abrigo Adidas.
Fidel Castro foi herói e vilão. Para Cuba, para o mundo e para gerações. Como comandante da Revolução, liderou a épica invasão da ilha a bordo do barco Granma, comandou a guerrilha na Sierra Maestra, com Che Guevara e Camilo Cienfuegos e chegou a Havana, colocando para correr a ditadura de Fulgêncio Batista. O pêndulo ideológico mudaria e, de roldão, arrastaria a América Latina e o planeta. Cuba tornou-se a o santuário da esquerda em um subcontinente dominado pelo conservadorismo. Era exemplo de que um outro mundo era possível, longe da exploração capitalista. Líder da experiência mais concreta do comunismo fora da URSS, Fidel foi amado e idolatrado. Mas, a exemplo do Sudeste Asiático, a América Latina virava campo de batalha da Guerra Fria. Logo, Fidel tornaria-se também o comandante do paredón, fuzilando inimigos, prendendo dissidentes e perseguindo escritores que ousavam criticar a ditadura. Seus discursos de mais de 10 horas imortalizaram o líder, primeiro com voz aguerrida do militar, depois, como um sábio mentor, que mais do que observar a história do século 20 era partícipe. Só saiu de cena em 2006, passando o poder temporariamente para Raúl Castro. O temporário virou permanente. Mesmo longe, ainda influenciava o governo nas grandes decisões.
Como enviado especial de ZH, estive em Cuba em dezembro de 2014, um dia após o anúncio de Barack Obama e Raúl Castro sobre a histórica reunificação. Os carros antigos, os prédios carcomidos, a internet lenta e restrita a turistas – mesmo assim, tão devagar que era incapaz de mandar um vídeo de um minuto para o jornal – davam a sensação de estarmos em outro planeta. Procurei pela residência de Fidel em Havana, mas nem os próprios cubanos sabem exatamente onde era sua casa. Eu sabia que sua casa ficava perto do centro, mas os moradores da ilha pareciam me dizer que Fidel não estava lá. Estava em todo o lugar.
Com o símbolo que se vai, também os cubanos se sentirão menos presos ao passado. Abrem-se as portas do mundo. Para o bem e para o mal. Fidel foi o último grande líder do século 20 a morrer. Mas, mesmo morto, continuará a influenciar o mundo que ainda hoje é regido pela lógica bipolar da direita e da esquerda.