Conheci o país mais pobre do Hemisfério Ocidental em três ocasiões: a primeira foi em 2005, acompanhando a troca do comando militar brasileiro na força de paz das Nações Unidas, quando o Haiti deixava o passado de guerra civil, de sucessivos golpes de Estado e de miséria extrema para inaugurar uma era de paz duradoura – ainda que com a mesma miséria.
A segunda visita foi em 2007, quando fiquei uma semana com os militares gaúchos acompanhando missões de pacificação, patrulhas e as chamadas Aciso – Ações Cívico-Militares, uma espécie de ofensiva brasileira para conquistar corações e mentes dos haitianos. Meses antes, os brasileiros haviam travado, na conquista de Cité Soleil, sua mais dura batalha desde os pracinhas que lutaram na Itália, na II Guerra Mundial. Remanescentes de gangues foram presos, alguns, mortos, e a pacificação chegava a uma das mais perigosas favelas da América Latina.
Nas duas viagens, senti na pele o que significa o ditado haitiano que diz que, uma vez no Haiti, nossas vidas estarão para sempre coladas a esse país. Por mais que a Minustah fosse contestada interna e externamente, dava um orgulho danado ver a bandeira brasileira colada ao braço de soldados que entregavam comida, aplicavam vacinas, cuidavam de doentes e carregavam no colo crianças esfomeadas e muitas vezes feridas. Centenas de haitianos aprenderam português simplesmente por ficarem no portão da base do batalhão brasileiro, BraBat, dias e noites, buscando algum tipo de trabalho – e muitos, depois, foram empregados como intérpretes ou prestando algum tipo de apoio logístico.
Se na minha primeira visita, quando usei capacete e colete à prova de bala e circulei nos blindados Urutu e Cascavel por ruelas, sentia-me como um americano invadindo o Iraque, na segunda viagem já me sentia em casa. Era possível dispensar o colete, andar em carros abertas. Havia uma certeza: o Brasil estava ajudando a reconstruir a paz no Haiti.
Então, veio minha terceira viagem, a mais cruel, a mais difícil de todas as anteriores: janeiro de 2010, no terremoto que matou mais de 300 mil pessoas. Desta vez, entrei com o cinegrafista Fernando Rech, da RBS TV, de carro, a partir da República Dominicana. O aeroporto estava destruído. As casas estavam devastadas. E o país praticamente deixou de existir.
Nunca esqueci as cenas de corpos pelas ruas, esmagados ou inchados pelo calor e sol caribenhos. E o olhar... Sim, o olhar dos haitianos mereceria capítulos a parte em qualquer descrição sobre o país. Não há tristeza nesse olhar. Não há necessariamente dor. Há resignação.
Depois de golpes, de furacões, de guerras, os haitianos simplesmente tocavam a vida. Enterrando corpos, reerguendo casebres.
Agora, o furacão Matthew é mais uma praga que se abate sobre o país. São mais de 800 mortos, segundo contagem desta sexta-feira. Mas o que há mais para destruir no Haiti senão a própria morte? Porque a resignação dos haitianos, esta, certamente, o furacão não conseguirá destruir.