Menos de 36 horas depois do terremoto que devastou o Haiti, em 2010, matando mais de 300 mil pessoas, os haitianos que paravam o cinegrafista da RBS TV Fernando Rech e a mim nas regiões mais miseráveis de Porto Príncipe, como BelAir e Cité Soleil, reclamavam de que nenhuma migalha da colossal ajuda internacional deslocada para a ilha do Caribe chegara a suas mãos. Medicamentos, comida, água, roupas, barracas de campanha – tudo o que, no jargão diplomático, é conhecido como ajuda humanitária – subiam do Aeroporto Toussaint Louverture para os cerros da capital direto para os bairros mais abastados, como Pétion-Ville. Lá, onde é comum as caminhonetes de políticos, empresários e diplomatas, onde o cinza e o cheiro de podre da capital não ocupam o ar – e até se pode esquecer por alguns minutos de que estamos no Haiti –, a reconstrução já havia começado. Embaixo, perto do mar, a imensa massa ainda enterrava seus mortos em valas comuns ou cavoucava escombros com as unhas para achar algum parente desaparecido. Em resumo: quem tinha dinheiro ou influência, recebia ajuda da ONU, dos EUA e da União Europeia. Quem não tinha, até hoje espera um galão de água.
A corrupção endêmica haitiana drena as enormes somas de dinheiro que ONGs e governos despejam no Haiti. Praticamente nenhum centavo dos cerca de US$ 9 bilhões que a comunidade internacional injetou no país desde a tragédia chegou à população mais pobre, que vive em casebres, sem água potável e cujas crianças seguem comendo bolachas de barro e vivendo sob tapumes. O presidente que deixou o poder na semana passada, Michel Martelly, seguiu a velha cartilha haitiana, de privilégios, falcatruas e requintes autoritários – durante um ano dos cinco em que ficou no poder, governou por decreto, concedeu cargos e privilégios aos filhos da ditadura Duvalier e tentou manter a população silenciada à base de “presentes” em forma de bolsas sociais. Sua família forrou os bolsos de dinheiro, enquanto seu governo não teve sequer competência para preparar uma eleição dentro dos limites da lei e da democracia. O resultado: o Haiti precisou ter um presidente interino, eleito ontem e cujo mandato deve vigorar até 24 de abril.
Aliás, interino é uma palavra bem adequada ao Haiti. Governos interinos. Ajuda humanitária interina. Sonhos interinos. Esperança interina. Só a corrupção e a pobreza parecem eternas.