Pacato distrito de Bruxelas, Molenbeek-Saint-Jean tem alguns dos mais infames apelidos: berço do jihadismo europeu, ninho de terroristas, fábrica de extremistas. Desde sexta-feira, à extensa ficha criminal da comunidade de 100 mil habitantes, foi acrescida a gestação dos atentados de Paris. Uma visita ao local começa com a desconfiança do taxista diante do pedido do passageiro:
- Hum... Molenbeek...
O motorista ri nervoso. E só se tranquiliza quando é avisado de que não precisará ficar aguardando. A fama de Molenbeek nasceu nos anos 1940, com a chegada de imigrantes italianos. Depois vieram os gregos e espanhóis, atraídos pelas promessas de trabalho nas indústrias da região. Em seguida, chegaram os árabes, que hoje são maioria, mais de 80%. O estigma de berço de terroristas surgiu em 1990, quando o xeque Bassam Ayachi, um francês salafita, abriu o Centro Islâmico Belga. À época, ele começou a cooptar jovens para a rede Al-Qaeda, de Osama bin Laden. Hoje é o Estado Islâmico que assedia os jovens do bairro.
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Boa parte do horror no mundo no século 21 passou por Molenbeek: a execução do líder anti-Talibã Ahmad Massoud dois dias antes do 11 de Setembro, os atentados de Madri, em 2004, e os mais recentes contra o Charlie Hebdo, há 10 meses. Todos foram arquitetados nesses prédios de no máximo quatro andares de Molenbeek. O desemprego e a falta de perspectiva são apontados como motivação para o extremismo. Jovens, filhos e netos de imigrantes do Magreb (norte da África), que não se sentem nem marroquinos nem belgas, acabam pescados pelo jihadismo. O próprio governo admite que, em Molenbeek, o radicalismo encontra terreno mais fértil.
O bairro não se diferencia em nada de outras regiões de imigrantes que apinham as cercanias das capitais europeias. Há um mix cultural. Na Avenida Chaussée de Gand, a principal, há lojas ocidentais, com sapatos e vestidos até sensuais. Ao lado, estão estabelecimentos tradicionais árabes, que vendem túnicas para homens, lenços para mulheres e livros religiosos, como o Alcorão. Essa mistura cultural se repete na comida. De um lado, é possível comer uma versão belga de hambúrgueres fast-food. De outro, um doner kebab.
Há um local em Molenbeek que atrai os olhares do planeta desde segunda-feira, quando a polícia começou a dar cara aos terroristas que atuaram em Paris. Trata-se de um prédio branco de dois andares, bem em frente a uma praça, ao lado de uma loja de tecidos. Ali morava Salah Abdeslam, o rapaz que teria alugado o carro para os terroristas que invadiram a casa de shows Bataclan, em Paris. O nome da família Abdeslam está escrito à caneta no interfone do edifício de número 30. Ninguém responde a um chamado.
No primeiro andar, algumas crianças, de vez em quando, afastam a cortina e observam pela janela. Do lado de cá, um enxame de câmeras apontadas para elas. Ao lado da porta de ferro, há uma rua de comércio popular: ursos de pelúcia, comida, chinelos, equipamentos para cozinha. Os comerciantes se alternam entre a indignação e a resiliência:
- Estão acabando com a imagem de Molenbeek - diz um.
Outro lamenta:
- Foi muito grave. Não sabemos o que fazem e o que pensam aqui.
No fim de semana, sete pessoas foram detidas sob suspeita de terem ligação com os atentados, entre elas o irmão de Salah, que acabou libertado ao afirmar que não sabia onde está o suspeito. Outro conhecido morador de Molenbeek é Abdelhamid Abaaoud, um belga-marroquino que está há cerca de dois anos na Síria e ficou conhecido ao aparecer em uma série de fotos sorrindo, ao volante de uma caminhonete carregada de cadáveres. É considerado o mentor dos ataques a Paris.
Passa das 15h de terça-feira. Basta afastar-se do burburinho do centro, das unidades móveis das emissoras de TV, para se perceber que Molenbeek tem ares provincianos, de quase fim de semana. Há poucos pedestres e carros. Mulheres vestindo o lenço islâmico carregam filhos nos carrinhos ou no colo. Um homem evita a câmera fotográfica. Um grupo de estudantes, com idade entre oito e 10 anos, atravessa a rua correndo. As risadas ecoam pelo silêncio do bairro.
- Lá é a casa do terrorista - diz um deles, apontando para o fim da rua.
Seguem às gargalhadas. Não há medo. Ao visitante, resta uma certa desconfiança: como um atentado que colocou a França de joelhos foi arquitetado por trás dessas janelas de um bairro aparentemente tão pacífico? O que estaria sendo planejado para os próximos dias por trás desses prédios?
Oferta de melhores condições de vida é estratégia para atrair jovens para a Síria
Os idosos de Molenbeek evitam os jornalistas que invadiram o distrito belga nos últimos dias. Mas os jovens, como Zakarias, 18 anos, aceitam falar sobre o estigma de berço de terroristas. Filho de imigrantes tunisianos, o jovem, nascido em Palma de Mallorca e há três anos na Bélgica, está reunido com outros seis amigos perto de uma escola, localizada na Rua Sainte Marie. Ele conta que seus pais se mudaram para Bruxelas em busca de melhores condições de trabalho.
Zakarias planeja, em dois anos, entrar na faculdade de engenharia elétrica, um de seus sonhos. Jovens como ele estão na mira de imãs radicais capazes de reunir, aos finais de tarde, imigrantes árabes saudosos de casa e descrentes nos centros comunitários de Molenbeek. O rapaz condena o extremismo, mas admite que muitos outros de seu distrito têm pensamentos radicais.
- Conheces alguém? - questiono.
- Meus amigos - diz ele, mas pede para não entrar em detalhes.
Um dos jovens do grupo que está com Zakarias, Mohammed, 18 anos, afirma que dois amigos deixaram a Bélgica para se unir ao Estado Islâmico na Síria.
- É comum por aqui - revela.
Mas o que leva os jovens a matar e a morrer pela guerra síria?
- Eles são manipulados. O Estado Islâmico vende a ideia de que, lá, tudo será bom. Eles foram em busca de uma vida melhor - afirma.
As redes sociais são o principal veículo de cooptação em Molenbeek. A mensagem é simples: "Na Bélgica, não és nada, mas, na Síria, podes ser um guerreiro". Durante as cinco horas em que ZH esteve no distrito, não se percebeu escolas radicais ou agrupamentos suspeitos.
Com 475 cidadãos que em algum momento migraram para o EI, a Bélgica é o país da União Europeia com mais jihadistas per capita (43 para cada milhão de habitantes). De acordo com esses cálculos, há 269 belgas na Síria ou no Iraque e 15 a caminho. Outros 129 retornaram e 62 foram impedidos de partir. Desses, quase todos passaram em algum momento por Molenbeek.
Anos de relações com o horror
2001
- Dois dias antes dos atentados de 11 de Setembro, foi assassinado no Afeganistão o líder da Aliança do Norte, grupo que lutava contra o Talibã (aliado da rede Al-Qaeda). Ahmad Sah Masud foi morto por um terrorista que se fez passar por fotógrafo. Abdessatar Dahmane, autor do atentado, era um tunisiano que vivia em Molenbeek.
2004
- Os marroquinos Hassan El Haski e os irmãos Mimoun e Youssef Belhadj são considerados os cérebros dos ataques de 11 de março daquele ano na estação de trens de Atocha, em Madri, reivindicados pela Al-Qaeda. Os três moraram no bairro. No ataque, 191 pessoas morreram.
2014
- Também passou pelo bairro o francês de origem marroquina Mehdi Nemmouche, que, em 24 de maio, cometeu um atentado contra o Museu Judaico da Bélgica. Quatro pessoas morreram. Ele planejou o ataque em um apartamento alugado de Molenbeek.
2015
- Também no bairro, Amedy Coulibaly, francês com pais nascidos no Mali, conseguiu as armas para realizar o ataque terrorista contra um mercado de produtos judaicos na Porte de Vincennes, em Paris, um dia depois do atentado contra a revista Charlie Hebdo, em Paris.
2015
- O marroquino Ayoub El Khazzani tentou, no dia 21 de agosto, cometer um atentado contra um trem da companhia Thalys, entre Amsterdã e Paris. Ele embarcou em Bruxelas, depois de ter morado por várias semanas em Molenbeek, onde, ainda hoje, vive sua irmã.
Atentados em Paris
Mais de cem pessoas morreram na noite de sexta-feira, em Paris, na França, após uma série de ataques terroristas em diversos locais da capital francesa. Tiroteios e explosões ocorreram de maneira coordenada em seis lugares: no Boulevard Voltaire, em frente ao bar La Belle, Bataclan, na Rua de la Fontaine, no bar Carillon e no Stade de France. Logo após os ataques, o presidente francês, François Hollande, decretou estado de emergência e fechou as fronteiras do país.
Em vídeo, veja como foi a sequência dos ataques em Paris:
Poucas horas depois, o Estado Islâmico assumiu a autoria dos atentados. Oito terroristas foram mortos durante as ações. Suspeitos foram presos na Bélgica e na Alemanha, mas a polícia acredita que outros organizadores dos atentados estejam à solta.
Confira o mapa dos ataques:
*Zero Hora