* Escritor
Ao aprovar por unanimidade, em primeiro turno, emenda à Constituição que acaba com o foro privilegiado para crimes comuns, o Senado Federal criou uma daquelas situações em que até o santo desconfia. Abriu-se a porta das conjeturas. O que motivou tão inesperada decisão? O que levou cavalheiros que não abrem mão de seus percentuais nos negócios do Estado a se entregarem à "sangria" do juízo comum? Desculpem-me a ousadia, mas aí tem.
A pauta político-penal brasileira está em processo de aceleração. De um lado, as "bases", a imprensa, as redes sociais e as manifestações de rua pressionam pelo fim desse privilégio. De outro, as investigações e delações colhidas pela Lava-Jato juntam-se às muitas pilhas de processos já cobertos de pó nas prateleiras do Supremo e cobram uma atitude menos pastoral, menos burocrática de seus ministros. De outro, ainda, o calendário eleitoral do ano que vem traz o tabuleiro do pleito para o centro da mesa de decisões. A eleição é logo ali.
Toda consciência bem formada rejeita a ideia de que devemos conviver com uma realidade política presa a esta tão constrangedora máxima: ninguém governa o Brasil sem consistente maioria parlamentar e não há maioria parlamentar consistente sem uma boa quota de criminosos. Embora pareça, tal frase não expressa um realismo cínico, o que ela transmite é simples informação. As delações da Odebrecht, filmadas e exibidas à nação, corroboram a necessidade de que esse período até 1º de fevereiro de 2019, data da posse do Congresso a ser eleito em outubro do ano que vem, sirva para um indispensável expurgo judicial e político.
É imperioso reduzir à menor expressão possível o peso e o porte da organização criminosa que ali vem operando! Em boa proporção, a nação já sabe quem é quem em tais pilhagens. A certos casos já pode dizer como no conhecido thriller – "Nós sabemos quem vocês são e vimos o que fizeram" – e tomar o dito em conta na hora de votar. Simultaneamente, uma solução pela via judicial encurtará o caminho que, para muitos, separa a porta da garagem da porta da carceragem.
Tem sido mencionado que a aparente determinação do Senado em acabar com o foro privilegiado teve a intenção de inibir uma possível iniciativa do STF, que culminaria por chegar a algo parecido mediante uma de suas investidas no espaço legislativo. Pode ser, mas na perspectiva dos encrencados com a Justiça pareceria preferível pagar para ver. Também pode ser uma jogada do Senado, que pretendeu passar à Câmara dos Deputados os custos da desaprovação da medida. Esse jogo de ônus e bônus foi iniciado quarta-feira mesmo pelo senador que relatou a proposta: "Hoje é um dia histórico para o Senado e para a República. Espero que a Câmara dos Deputados tenha a mesma celeridade e atenção aos clamores da sociedade". Pode ainda estar em curso um conjunto combinado de medidas protelatórias para que, ao fim e ao cabo, a PEC morra asfixiada dentro de alguma gaveta.
Como se percebe, não confio nesse Congresso Nacional. Como foi que saímos (se é que saímos) do voto em lista fechada para o fim do foro privilegiado, com apoio dos mesmos atores? O voto em lista fechada, inconstitucional porque acaba com a cláusula pétrea do voto direto da pessoa do eleitor na pessoa do candidato, assegurava aos atuais deputados retomarem suas cadeiras escondidos como num rocambole. E com elas as bem-aventuranças do privilégio de foro. Tem razão o santo.