Se o czarismo não dava origem ao melhor dos mundos, o movimento revolucionário que mudou o regime em 1917 causou à sociedade russa um dano incalculável. E não se deu por cumprido. Levado pelo imperialismo russo, o comunismo viria a estender fronteiras, impondo-se sobre nações até então livres e irradiando genocídio, miséria e servidão. O simples registro ou narrativa dos fatos que se desenrolaram a partir do velório da Rússia czarista não pode silenciar ante o simultâneo surgimento, ali e então, do primeiro, modelar e mais letal dos coletivismos totalitários que infernizaram o século 20. O nazismo e o fascismo aprenderam do comunismo. Deveríamos estar falando mais sobre isso, sempre que mencionados os fatos ocorridos às margens frias do Rio Neva, há exatos cem anos.
As mulheres e os grevistas que a elas se juntaram para marchar nas ruas de Petrogrado, no dia 8 de março daquele ano fatídico, pedindo pão e paz, cantavam a Marselhesa e não podiam imaginar a intensidade das forças que desencadeavam. Talvez sequer soubessem que reproduziam o mesmo hino entoado na tomada do Palácio das Tulherias, quando, nos desdobramentos da Revolução Francesa, se liberavam as forças do Terror e a guilhotina fazia rolar três cabeças a cada dois minutos. A caixa de Pandora aberta em Petrogrado seria infinitamente mais maligna. Mas é bom relembrarmos: para cada Robespierre ou Saint-Just, a Revolução Russa iria, ao longo das décadas seguintes, mundo afora, disponibilizar multidões de sanguinários ditadores e monstruosos agentes políticos. Gerações de revolucionários e intelectuais, partidos e militantes se sucederiam para disseminar uma ideologia perversa na concepção e comprovadamente ainda mais perversa na execução, em todas as suas experiências históricas.
Talvez convenha, aqui, lembrar o velho Winston Churchill, porque é sempre uma saudação à inteligência fazê-lo. Enquanto a chapa esquentava em Petrogrado, naquele março de 1917, Lenin estava exilado na Suíça. O curso dos eventos muito lhe agradava, mas não podia comandá-los através, apenas, das cartas que escrevia. Ele precisava chegar ao palco. Hábil que era, conseguiu negociar com os alemães autorização para cruzar o país em direção à Suécia. Foram oito dias em companhia de outros camaradas, dentro de trem blindado, até Estocolmo e, dali, para a Finlândia e Petrogrado. Churchill, referindo-se a essa inusitada travessia de um grupo de cidadãos russos, sendo a Rússia adversária da Alemanha na guerra, comentou que tal viagem se dera "num vagão lacrado como bacilo de peste". A frase e o lacre se justificavam plenamente.
Para Lenin, a I Guerra Mundial era um conflito entre interesses imperialistas com o qual nada tinha a ver. Interessava-o aproveitar as consequências da guerra na vida das pessoas para fazer eclodir o que via como fundamental - o embate entre as classes sociais com vistas à ditadura do proletariado. Foi com tal visão que convenceu os alemães a lhe darem passagem e foi com essa perspectiva que chegou ao poder supremo no final do mesmo ano. E sobreveio o Terror. E nasceu o organismo dele encarregado, a Cheka, que viria a inspirar, menos de 20 anos depois, as SA e as SS nazistas, e os camicie nere fascistas. Alguém dirá que a política não é lugar de muito bons modos, que nunca foi domicílio da verdade e que, em maior ou menor grau, a repressão, ativa ou inativa, está sempre em seu estoque de meios.
O que só o coletivismo comunista e seus dois filhotes – nazismo e fascismo – fazem, porém, é uma política em que os adversários não são pessoas ou facções divergentes. São estes também, mas, principalmente, são grupos sociais inteiros passíveis de eliminação: burgueses, proprietários, etnias, nacionalidades. E tudo começou há exatos cem anos, quando o mundo conheceu a novidade política mais nociva da contemporaneidade.