Posso divagar hoje? Fique um pouco comigo leitor ou leitora. Vamos ver.
Começo com Pascal, Blaise Pascal. Um gênio. No Brasil, ele é conhecido por uma observação que, de tão citada, perdeu todo seu sabor original e virou mero clichê: "O coração tem razões que a própria razão desconhece".
Mais interessante é o que ele escreveu sobre religião (se bem que a frase-clichê, salvo engano, também diz respeito à religião e não ao amor romântico, como acreditam 95% da população). Refiro-me, por exemplo, ao seguinte aforismo de Pascal: "O ateísmo é verdadeiro – mas só até certo ponto"! Veja bem, leitor ou leitora: verdadeiro, mas até certo ponto... Testemunho de uma fé dilacerada, agonizante, como a de Miguel de Unamuno.
Fé que também agoniza quando Pascal diz: "Ajoelha-te, reza, e crerás"! Nada mais verdadeiro. É o que poderíamos chamar de "efeito Pascal". Exortação paradoxal, vinda de um cristão, pois a ela subjaz uma visão materialista dos processos espirituais...
O leitor ou leitora é daqueles ávidos de nitidez e explicações precisas? Espero que não, pois nada estraga mais um texto do que explicações completas e didáticas. Em todo o caso, a título de elucidação, conto um episódio da história da França.
Depois da derrota na guerra contra a Prússia em 1870-71, a França perdeu a Alsácia e a Lorena (só viria a recuperá-las com a vitória sobre a Alemanha na guerra de 1914-18). Bem, as "províncias perdidas" foram o grande trauma e o grande tema do nacionalismo francês nas décadas que antecederam a Primeira Guerra Mundial.
Um tribuno da época, Léon Gambetta, deixou uma recomendação célebre a respeito das províncias perdidas: "Y penser toujours, n'en parler jamais". (Sempre pensar, nunca falar) – calma, leitor(a), não perdi o fio da meada e estou tentando caprichar no espírito de síntese!
Eis, finalmente, o que queria dizer: Gambetta revelava aí uma profunda falta de percepção psicológica (supondo que ele acreditasse na própria frase, com político nunca se sabe). Maurice Barrès, outro genial escritor francês (admirador de Pascal, diga-se de passagem), nascido na Lorena e líder intelectual do nacionalismo francês, dava arrancos triunfais de atropelado quando ouvia a frase de Gambetta. Os homens são constituídos de tal maneira, lembrava Barrès, que eles pensam às vezes – só às vezes – no que falam o tempo todo. E a frase do celebrado tribuno nada mais era do que um convite enfático ao esquecimento.
Em outras palavras, o efeito Pascal de novo. O ato físico de falar, ajoelhar-se ou rezar condiciona o pensamento e a fé.
Paro aqui. Eu planejava, na verdade, escrever mais sobre Barrès, um escritor hoje pouco lembrado, mas que deixou páginas inesquecíveis. Barrès era antissemita, anti-Dreyfus, mas escrevia como poucos. Alguém imagina julgar um artista por suas posições políticas ou comportamento moral? Todo artista verdadeiro está além do bem e do mal.
Mas o assunto é polêmico, e o espaço acabou. Quando puder, falo de Barrès mais um pouco.