A Amazônia pega fogo, Portugal também, inundações varrem a África, furacões devastam o Caribe, geleiras se dissolvem, campos férteis viram desertos, o mundo pede socorro e, no entanto, onde estão as multidões? Onde estão os milhões na rua, exigindo ação, exigindo um futuro? Casas submersas, animais carbonizados, rios de lama engolindo cidades, nada disso é razão para protestos?
Claro que é. Só que as pessoas, em geral, estão mais preocupadas com a sobrevivência imediata — os desafios do trabalho, os boletos do mês, a escola dos filhos, a saúde dos pais. Protestar pelo futuro, quando o presente é uma luta diária, talvez seja pedir muito. Mas não é impossível, pelo contrário: as massas conseguem vencer essa apatia, a história comprova isso, desde que encontrem uma força capaz de despertar sua fúria.
O ensaísta Elias Canetti (1905-1994) fala sobre essa força no livro Massa e Poder. Em primeiro lugar, segundo Canetti, não existe manifestação de massa espontânea. Pode haver um protestinho espontâneo aqui, uma panelinha batendo lá, mas uma manifestação massiva, daquelas imensas que ameaçam o status quo e arrepiam a espinha de presidentes, essa aí precisa de organização, planejamento, ordem, coordenação.
E quem é que organiza a massa? Quem é que agrupa esses indivíduos dispersos, reúne suas angústias e dá sentido para a multidão? Elias Canetti chamou essa figura de "cristal de massa" — metáfora que ele buscou na química, uma das suas áreas de pesquisa, para mostrar como os elementos se aglutinam. O MBL, por exemplo, foi um cristal de massa contra Dilma. O Movimento Passe Livre cumpriu esse papel nas jornadas de junho de 2013. O Black Lives Matter e o movimento Me Too, nos Estados Unidos, atuaram como cristais de massa com alcance global.
Mas e agora, que cristal de massa pede transição energética, reflorestamentos e menos emissão de carbono? Temos o Fridays for Future, de Greta Thunberg, e o provocativo Extinction Rebellion, mas nem eles conseguiram, até agora, mobilizar de forma constante as multidões ainda apáticas. Só que há um limite para a apatia. Há um ponto em que o medo cede lugar à revolta, e o cristal de massa naturalmente ganha forma. Quando isso ocorrer, e não creio que vá tardar, o mundo, hoje quase surdo, vai ter que ouvir. E vai ter que mudar.