Texto publicado em Zero Hora no espaço de David Coimbra, que está em licença médica.
"Não há como se levantar
Suas mãos estão atadas; suas pernas, amarradas
A luz brilha em seus olhos
Você enxerga o fio da navalha
E abre a boca para chorar
Não adianta: a lâmina vai entrar!"
Como você interpreta esses versos? Que cena você enxerga nessa meia dúzia de linhas?
Em 1985, uma associação de mães liderada por Tipper Gore, esposa do então senador Al Gore, sacudiu os Estados Unidos ao abrir uma guerra pública contra bandas de rock e suas gravadoras. Na avaliação dessas mães, letras como a reproduzida acima, do grupo de heavy metal Twisted Sister, exaltavam o estupro, a violência, as drogas, o álcool, o sexo e – que horror! – a masturbação na adolescência.
A ideia era proibir as rádios de tocar uma enorme lista de músicas. E também obrigar as gravadoras a inserir um selo de "alerta aos pais" em capas de discos malcriados – esse selo vingou, existe até hoje. Foi um rebuliço nacional: senadores aplaudiam a iniciativa, fãs de rock protestavam nas ruas, a mídia repercutia o caso dia e noite, músicos se enfureciam em entrevistas.
Até que, no fim do ano, o Senado convocou uma audiência histórica com a presença dos astros John Denver, Frank Zappa e Dee Snider – este último, vocalista e compositor do Twisted Sister. As representantes da associação de mães compareceram indignadas, rugindo em defesa da família e dos valores cristãos.
Ao explicar a letra de Under the Blade (Embaixo da Lâmina), aquela reproduzida no início do texto, Dee Snider revelou que a música fora composta enquanto o guitarrista de sua banda estava no hospital, apavorado porque enfrentaria uma cirurgia na garganta. Não havia qualquer menção a estupro ou violência, como a líder das mães, Tipper Gore, insistia em alegar.
– Se você procurar na letra estupro e violência, pode encontrar. Mas, se procurar cirurgia, vai encontrar também. A única violência da música está na cabeça da senhora Gore – concluiu o metaleiro, antes de um sonoro "oooh" ribombar na plateia.
Snider foi certeiro porque, de fato, é possível enxergar praticamente qualquer coisa em qualquer situação – vai depender apenas da predisposição que houver para isso. Se, na sua cabeça, um cabeludão com cara de louco só pode ser má influência para os jovens, então você verá má influência em tudo o que Snider fizer.
Essa é a manifestação mais literal de preconceito – que nada mais é do que um conceito, ou ponto de vista, formado antes de se obter o conhecimento necessário sobre determinado assunto. Quando o preconceito nos controla, a tendência é sempre enxergarmos na situação um viés que confirme nossas crenças (ainda que elas estejam erradas). Porque estamos predispostos a isso.
Por exemplo:
Se você tem certeza de que todos os males da história do mundo são culpa da esquerda, você achará uma forma de encontrar esquerda no nazismo. Se sua convicção é de que os empresários são vilões da sociedade, você verá horrores em qualquer privatização ou parceria entre iniciativa privada e poder público. Se você se irrita com a ciência – porque ela prova, por exemplo, que transgêneros existem –, então você encontrará em Adão e Eva a explicação para a humanidade. E acreditará que vacina faz mal à saúde e também que a Terra é plana.
O preconceito é o maior inimigo da verdade, porque ele cega: não há o que alguém possa dizer, fazer ou mostrar para o preconceituoso rever suas certezas. E suas certezas são invioláveis não porque são verdadeiras, mas justamente porque, para o preconceito prosperar, a verdade precisa ser ignorada.
Depois do levante daquelas mães americanas, as gravadoras toparam incluir nos discos o selo de alerta aos pais. "Conteúdo explícito", avisa a etiqueta, que ainda hoje acompanha as obras com linguagem desbocada. O curioso é que esses discos, para desespero da senhora Gore – e regozijo de Dee Snider – dispararam nas vendas, esgotaram nas lojas, chegaram ao topo das paradas. Porque os jovens só queriam comprar "conteúdo explícito".
Bandas que não precisavam do selo passaram a implorar às gravadoras que lhes dessem a etiqueta. Algumas enfiaram palavrões em suas letras só para ganhar o tal rótulo. E assim o rock'n'roll mostrou o destino justo para toda forma de preconceito: a indiferença e o descrédito que ainda se fazem tão necessários.