*Texto publicado em Zero Hora no espaço do colunista David Coimbra, que está em licença médica.
Faz mais de 300 anos que a chamada “classe média culta” diz que a música popular, aquela consumida pelas massas, que hoje toca no rádio o dia inteiro, não passa de lixo.
– Bom mesmo era o som da minha época – e blá-blá-blá.
Nada mais arrogante. Aliás, o sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002) explicou as razões dessa arrogância – ou seja, por que a elite intelectual prefere não se misturar com o som do povão.
Bourdieu dizia que a cultura, antes de mais nada, é um elemento de distinção social. Quer dizer: a gente se utiliza dela para se sentir parte de um grupo descolado, sofisticado, maneiro, hype. Quando a música se massifica e é consumida pelo grande público, ela perde esse valor. Vira coisa de chinelão.
O problema é que os chinelões são visionários: 20 anos depois, o som deles vira cult, e lá vai a elite intelectual reconhecer seu valor – porque, obviamente, aquele som sempre foi bom. No início do século passado, samba era música de malandro. Na década de 1960, só alienado gostava da Jovem Guarda. Nos anos 1980, diziam que o rock ofendia a MPB. E, nos anos 1990, quem tivesse mais de 20 anos e gostasse de Mamonas Assassinas era abobado.
Sempre foi assim. Hoje você vê as orquestras tocando Johann Strauss (1825-1899) e acha muito chique, mas, no século 19, também era coisa de chinelão. Strauss, um gênio, sofria com o desprezo da burguesia e com a popularidade das próprias músicas, que só faziam sucesso em bailes. Na Áustria daquele tempo, as valsinhas de Strauss eram de gosto tão duvidoso quanto hoje são, por exemplo, Os Barões da Pisadinha.
Você já ouviu Os Barões da Pisadinha, imagino.
São eles que cantam aquela, que é meio forró, meio sertanejo, meio tecnobrega, que diz assim no refrão: “Eu já te superei / Certeza, eu superei / Mas não manda mensagem outra vez / Senão, recairei”. Percebe-se claramente que ele não superou coisa nenhuma – se tivesse superado, não teria medo de recair.
E o autor vai brincando com essa ambiguidade durante a música. É o que chamam, em psicanálise, de denegação: a pessoa nega a realidade, se recusa a aceitar o que está sentindo – é um mecanismo de defesa, todo mundo já fez isso. Portanto, logo no início da letra, Os Barões da Pisadinha parecem muito seguros: “Já tem uma semana que eu tô limpo de você / E de olhar os seus stories não sinto saudades”.
Milhões de pessoas se identificaram com essa letra porque ela propõe uma abordagem original para um assunto batido: a dor de amor.
Não é uma maravilha de frase? Me diga, qual é a prova mais irrefutável, nos tempos atuais, de que alguém finalmente conseguiu se livrar de uma paixão? Isso só ocorre quando as aparições virtuais da outra pessoa deixam de ser uma obsessão, um fantasma, um gatilho para sofrer. Só que a letra continua: “Zero curtidas, zero vontade de te ver / De beijar sua boca e dormir de conchinha sem roupa / E fazer um love, um love com você”.
Completamente apaixonado, coitado. Tanto que o próprio título da canção já avisava: Recairei.
Milhões de pessoas se identificaram com essa música – e o melhor nem é a letra, é a melodia mesmo –, porque ela propõe uma abordagem original para um assunto batido: a dor de amor. Escute Os Barões da Pisadinha. Você tem sorte de viver na época deles, porque, daqui a 20 anos, ouvindo qualquer canção horrível por aí, poderá encher a boca para dizer:
– Bom mesmo era o som da minha época.